sexta-feira, 31 de maio de 2019






EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGENS
(excerto)

Cheguei.
A plataforma se estende por metros e metros, e então finaliza em uma rampa que termina abruptamente num punhado de pedregulhos cobertos por óleo e ungidos por ruídos. Chaves se movimentam, preguiçosas. Há ainda algum vestígio de vapor embora os trens do Império tenham sido trocados por locomotivas há um certo tempo.   
O portão de ferro antes da rampa está aberto com as pontas da grade para cima e todos passam silenciosos como nas fronteiras, as crianças por baixo da catraca e as de colo por cima, os adultos empurrando a portinhola com a barriga provocando aquele estalido que se parece com o do portão do cemitério à noite quando se fecha. Ouve-se o mesmo guincho estridente que se ouvia no século passado, os ratos se protegem das botinas e os quadros de aviso sem leitores e sem avisos ficam só observando.
Assim também fazia o Fuehrer, tocava o seu rebanho ao som de marchas e contramarchas, a mão estendida para ver se chovia, até que choveram as bombas estreladas, e então mesmo aquela cruz quebrada impressa sobre sangue perdeu a sua austeridade, mesmo os centuriões perderam os seus escudos e as suas máscaras – as contra gases e as da arrogância – e mesmo o som da marcha perdeu o seu repique.
Assim sempre foi e assim sempre será – a ascensão e a queda dos terceiros reinos.  
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Agora no hotel-pensão. Depois do banho mal tomado vem a noite mal dormida que me faz virar e revirar na cama desconfortável como um mártir na fogueira. Não sei se foi o sanduíche noturno, se foram as doses mal digeridas ou se é o mal-acomodado do catre, mas a gente nem dorme nem acorda, o corpo coça e a respiração sufoca. Bateu uma hora, uma e meia, duas horas, duas e meia, onde estou? onde estou? onde estou?   
O amanhecer é amargo, o corpo está doído e suado, vem o café com leite no copo e o pão de ontem com manteiga e a gente ouve gritos no corredor – “sete horas! sete horas!” – como se alguém estivesse perguntando, como se alguém tivesse perguntado.
A poltrona de palhinha na recepção está cheia de jornais amassados contando os falecimentos do dia e os nascimentos do mês, as proposições do prefeito e as agressões na Câmara.
O hotel-pensão guarda um não sei o que de orgulho, um não sei o que de empáfia, dizem que as cadeiras de palha ficaram assim distantes desde que nela se sentou a bunda do imperador.
O velho telefone de gancho agora não passa de um enfeite no recesso do corredor, e ao lado um rádio antigo com cara de gente e de um quadro de chaves sem chaves completa a paisagem oitocentista que combina perfeitamente com a cara do dono.
Lá fora, brilha o sol.
A praça me recebe com aplausos, mas os bancos de madeira me recebem com reservas. O imperador me sorri do alto da sua estátua, os engraxates me perseguem e os postes estão dormindo com seus olhos apagados.
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Estação de águas, estação de trem, estação de cargas, estação do ano, vou voltar para as minhas coisas antes que eles me acusem de desdenhar da praça secular, de ameaçar a quietude do lugar, de atentar contra o encanto do hotel-pensão ou de mijar na estátua do imperador.
O trem vai saindo.
Um último aceno ao imperador.

   

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