sábado, 31 de agosto de 2019






A LUXÚRIA  
(Excerto II)


O velório até que estava animado.
No canto da sala dois amigos e um tio do falecido relembravam historietas de outros velórios, aqueles onde não faltava o café forte e a cachaça batizada, com as piadas de humor negro fazendo a alegria da festa.
No sofá de ramagens vermelhas já um tanto gasto pelo uso de tantos assentos, manchado no braço direito e engordurado no esquerdo, o velho patriarca, tio-avô do morto, sorria suas rugas bem-comportadas e admirava as curvas das sobrinhas-netas que por lá saracoteavam – “... mas que beleza de ancas... – o tio-avô um eterno fauno.
A viúva, cabelos em desalinho, ainda meio confusa, pranteava o defunto sem saber o que iria acontecer dali pra frente com cinco filhos pra criar e a incerteza do futuro.
Tudo transcorria normalmente, mas alguma coisa estava por acontecer, a interrogação balançando no ar qual uma espada de Dâmocles, a sensação do escândalo, o escândalo...

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Elvira, trinta e dois anos, ex-rainha dos funcionários da empresa, dois filhos inquietos como dois sanhaços.
Encarnação, trinta e quatro, ex-filha de Maria, dois filhos inquietos como dois pintassilgos.
Doralice, trinta e oito, o vestido justo demais para uma ocasião tão fúnebre, um filho só, mas irrequieto como um periquito em dia de festa.
Gracinha, dezenove, estudante, sem filhos, veio direto da escola, os olhos vermelhos e a expressão de criança, ainda sem acreditar no que via.
Todas vieram prantear o marido, companheiro, amante ou namorado ora esticado no caixão, todas reclamando seus direitos sobre o finado e seus bens.
O velho patriarca, de olhar jocoso, relembrava seus bons tempos afundado no sofá de ramagens, enquanto os amigos e o tio do falecido anotavam mentalmente cada detalhe para servir de anedota em futuros velórios.
“... eu não acredito, eu não acredito...” balbuciava a viúva enquanto as outras meio-viúvas se entreolhavam com olhar de incredulidade e os seus filhos, alheios à barafunda que se formou diante do caixão, brincavam juntos do lado de fora, pulando como macaquinhos.
Parada na soleira da porta estava Angélica ao lado dos seus dois pirralhos, hesitando entre o entrar e o não entrar para também reivindicar seus privilégios.
Deitado de costas, como bem convém a um morto no caixão, Josué a tudo assistia imóvel e silencioso. Há quem jura ter percebido no rosto outrora brejeiro um sorriso de satisfação.  

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