sexta-feira, 3 de abril de 2020






COMO NASCEM AS CANÇÕES
(Augusto Pellegrini)

(Parte 1)


Em teoria, a música se completa em si mesma apenas com a existência de três elementos: a melodia, a harmonia e o andamento.
A melodia é uma sucessão de sons e pausas que confeccionam e modelam o corpo da música, enquanto que a harmonia é uma sucessão de sonoridades e acordes que vestem o corpo da música. Já o andamento, também conhecido como ritmo – embora musicalmente existam sutis diferenças entre o significado dos termos – é o tempo em que os compassos da peça musical são desenvolvidos para marcar o caminhar da música.
Letra, percussão rítmica e arranjos são complementos que ajudam a compreensão e a integração da música no ambiente, mas apesar de muito importantes no resultado final apresentado podem até ser considerados dispensáveis, pois a música consegue existir, comover e provocar sensações mesmo na ausência deles.
Esta constatação não é lá muito agradável para quem, como o cronista, vive mais em função das palavras do que das notas musicais. Esta dissociação não impede, porém, que exista uma saudável cumplicidade entre o criador da melodia e o escritor da letra da música, que muitas vezes se fundem numa única pessoa.
Letristas e musicistas se completam e juntos transformam letras e notas musicais em verdadeiras obras de arte, criando sensações e efeitos inefáveis quando a força tônica das notas entra em comunhão com a acentuação e a força da poesia. 
Os compositores compõem as letras das suas músicas tendo como exercício de inspiração as mais diversas e improváveis situações.
Todo tipo de emoção humana pode fazer parte do processo para que o compositor consiga expor a sua arte: questões de amor, lembranças e saudades, modismos e ideias que expressam curiosidade, malícia, crítica, ironia, ufanismo, despeito, humor, protesto social, engajamento político, filosofia popular, homenagens – a pessoas e lugares – e até oração e religiosidade. 
Os musicistas e letristas na sua grande maioria compõem as suas obras por pura inspiração, embora alguns o façam por encomenda, desafios ou, em casos extremos, até para serem comercializadas; mesmo neste caso esta mercantilidade não apaga o sentido da poesia, da melodia e da harmonia se a música tiver como resultado final aquilo que se chama de “qualidade” (pela sua amplitude, o conceito de qualidade fica para ser discutido numa outra ocasião).
A história da música popular brasileira – e universal – está repleta de curiosidades no que diz respeito à origem de certas canções, o que mostra a inesgotável força criativa dos compositores.
-0-
Herivelto Martins, por exemplo, compôs muitos sambas-canções tendo como tema a vida conjugal tumultuada que levava com a cantora Dalva de Oliveira. Havia entre eles um amor bandido – ele um boêmio irrecuperável, ela uma mulher ciumenta e cheia de caprichos.
Entre as composições de Herivelto dirigidas à Dalva, temos “Caminhemos” (“Não, eu não posso lembrar que te amei / Não, eu preciso esquecer que sofri / Faça de conta que o tempo passou / E que tudo entre nós terminou / E que a vida não continuou pra nós dois / Caminhemos, talvez nos vejamos depois”), gravada em 1947 por Francisco Alves, e “Cabelos Brancos” (“Não falem dessa mulher perto de mim / Não falem pra não lembrar minha dor / Já fui moço, já gozei a mocidade / Se me lembro dela me dá saudade / Por ela vivo aos trancos e barrancos / Respeitem ao menos meus cabelos brancos... / ... E agora, em homenagem ao meu fim / Não falem dessa mulher perto de mim”), gravada pelos Quatro Ases e um Coringa em 1949.
Foi em 1947 que Herivelto compôs “Segredo”, quando as brigas do casal eram muito intensas e tudo indicava que a separação já se tornara inevitável (“Teu mal é comentar o passado / Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois / O peixe é pro fundo da rede / Segredo é pra quatro paredes / Não deixe que males pequeninos / Venham transformar os nossos destinos... / ... Primeiro é preciso julgar pra depois condenar”), gravada pela própria Dalva.
A separação aconteceu em 1950, e depois dela Dalva recorreu a dois amigos compositores – J.Piedade e Osvaldo Martins – para gravar “Tudo Acabado” (“Tudo acabado entre nós, já não há mais nada / Tudo acabado entre nós hoje de madrugada / Você chorou, eu chorei / Você partiu, eu fiquei / Se você volta outra vez eu não sei / Nosso apartamento agora vive à meia-luz / Nosso apartamento agora já não me seduz / Todo o egoísmo veio de nós dois / Destruímos hoje o que podia ser depois”).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, ainda em 1950 ela voltou a desabafar com a gravação de “Errei Sim”, um samba “mea culpa” que Ataulfo Alves havia composto há alguns anos (“Errei sim, manchei o teu nome / Mas foste tu mesmo o culpado / Deixavas-me em casa me trocando pela orgia / Faltando sempre com a tua companhia / Lembro-te agora que não é só casa e comida / Que prende por toda a vida / O coração de uma mulher / As joias que me davas / Não tinham nenhum valor / Se o mais caro me negavas / Que era todo o seu amor / Mas se existe ainda quem queira me condenar / Que venha logo a primeira pedra me atirar”).

SEGUE

Nenhum comentário: