quinta-feira, 23 de julho de 2020





AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 5 - O SONHO
(continuação)

Kalamu ya Salaam é uma pessoa estranha de nome muito estranho e de atividades não muito ortodoxas. No fundo, suas esquisitices servem para emoldurar o misto de escritor, ator, poeta e músico que nele habita carregando consigo toda a bagagem cultural e a alma negra de Nova Orleans, sua cidade natal.
Foi em Nova Orleans que Salaam fundou algumas entidades culturais de preservação à negritude e às origens do jazz – a “NOMMO Literary Society”, a “360º - A Revolution Of Black Poets” e a “Runagate Multimedia”, divulgando com palavras, ações e livros o orgulho da sua raça e a veia poética das raízes africanas. Foi lá também que ele criou um grupo performático que atua na direção do blues, do jazz e de outras formas de poesia e música, chamado “WordBand”.
Kalamu ya Salaam escreveu uma deliciosa anedota que teria acontecido com Duke Ellington após uma das suas apresentações em um teatro de uma pequena cidade do interior do Colorado.
Ellington acabara de encerrar o espetáculo com uma apresentação brilhante de “Perdido”, depois de dois “bis” e muitos “bravos!” extraídos da platéia em êxtase, e se retirava para o seu camarim acompanhado por alguns dos seus músicos.
Harry Carney se declarava especialmente satisfeito pela reação de um público que eles não acreditavam pudesse vibrar tão intensamente com a apresentação da orquestra, e Willie Cook se mostrava surpreso com a receptividade do público para com algumas das músicas apresentadas, pois não acreditava que o sucesso do grupo pudesse ter chegado até estes lugarejos tão escondidos.
No caminho, uma pequena multidão se acercava dos músicos à cata de autógrafos.
Ellington ia driblando o quanto podia, deixando o importante, mas aborrecido encargo para Harry Carney, Sam Woodyard, Paul Gonsalves e Jimmy Blanton, que se esmeravam em atender os aficionados da melhor forma possível. No fundo, o público não saberia mesmo distinguir um músico do outro, e era até possível que aqueles que ocupavam os lugares mais distantes do palco não conseguissem reconhecer de perto o próprio Duke.
A noite estava agradável, e os camarins haviam sido montados do lado de fora do teatro num jardim cerca de oitenta metros da saída lateral do palco, para que todo o entourage de Ellington pudesse se acomodar confortavelmente.
Enquanto caminhava, pisando o gramado macio, o maestro olhava para o alto e fitava as estrelas que pontuavam no céu como jóias incrustadas num veludo negro. Com isso, além de prestar uma homenagem à natureza, ele também conseguia se esquivar dos fãs mais afoitos.
Mas eis que, a vinte passos da salvação, ele foi abordado de uma forma mais incisiva: um homem vestindo um terno cinza ligeiramente amarrotado simplesmente agarrou Duke pelo cotovelo, obrigando-o a parar e deu um passo à sua frente. Desfez-se em vênias e se apresentou como Joe Squire – “e senhora Squire” – acrescentou ele, indicando uma mulher com cara de poucos amigos que estava parada a seu lado, provavelmente desejosa de estar a quilômetros dali.
Ellington olhou para o cavalheiro que tinha a voz, o porte e o maneirismo de um vendedor de seguros, sorriu o seu maior sorriso e se prontificou em atendê-lo.
Joe Squire queria um autógrafo sobre a foto de Ellington estampada no programa que fora distribuído junto com o ingresso, e lhe passou o papel e a caneta, uma Parker 51 de tampa dourada. Enquanto dava o autógrafo, Ellington fitou a senhora Squire, que esperava impacientemente, estampando no rosto uma expressão entre a zanga e o enfado.
Era sem dúvida uma dama sulista, filha de algum fazendeiro falido na época da Depressão e que se vira forçada a casar com um homem deselegante e simplório como Joe e a abdicar de fortuna e classe.
A senhora Squire provavelmente ainda mantinha a arrogância dos tempos de fausto, e provavelmente não entendia como um homem branco financeiramente bem sucedido como o seu marido rastejava atrás de um negro para conseguir uma assinatura rabiscada sobre uma fotografia.
Ellington analisou a situação em poucos segundos e resolveu tomar uma atitude.
Cumprimentou Joe Squire efusivamente, agradeceu a sua presença no evento e, voltando o olhar para a sua mulher, perguntou – “qual é o nome de sua esposa, senhor Squire?”.
Rosemary”, respondeu Joe alegremente. E arrematou – “Rosemary Ann Squire”.
Belo nome” – disse Ellington. “Rose e Mary. O nome da Virgem emoldurado por uma flor”.
Ato contínuo, Ellington dirigiu a palavra à Rosemary, que olhava intrigada, não entendendo onde a conversa a respeito do seu nome iria chegar.
Senhora Squire, quero agradecer a sua gentileza de ter comparecido à minha apresentação. A presença de pessoas como a senhora em muito valoriza os meus shows. Uma orquestra de classe se sente gratificada quando é aplaudida por um público de classe”.
Terminando o pequeno discurso que deixou Rosemary Squire atônita, ele foi além.
Senhora Squire, peço a gentileza que venha comigo ao meu camarim. Tenho uma coisa muito bonita para lhe mostrar” – e apanhando-a delicadamente pelo braço, começou a se dirigir para o aposento improvisado.
Ambos caminharam em silêncio os poucos metros que separavam o local do encontro, onde Joe Squire permanecia estático, com uma expressão de incredulidade estampada no rosto. Ellington mantinha os olhos charmosos encimando um sorriso sedutor, e Rosemary seguia a seu lado como um autômato.
Na verdade, ela estava aterrorizada.
“O que pretende esse homem?”, ela se perguntava enquanto passava pela sua mente as terríveis histórias que seu avô contava a respeito dos negros que se vingavam dos brancos, histórias de sevícia e revanchismo.
Ellington entrou primeiro, depois a fez entrar, e deixou a porta aberta, para que todos vissem os seus movimentos. Além de Joe Squire, algumas pessoas se espremeram diante da porta do camarim, inclusive alguns músicos da orquestra.
Ellington trouxe a senhora Squire para frente de um cortinado verde-turquesa e lhe disse: “Madame, a senhora vai ver agora a imagem de uma mulher belíssima”. E abriu o cortinado.
Atrás do cortinado havia um espelho muito grande, próprio para os artistas se admirarem antes das apresentações a fim de se certificarem de todos os detalhes do vestuário e da maquiagem. Rosemary Squire se viu refletida no espelho, o vestido longo cor de violeta que contrastava com a brancura da pele dos seus braços e rosto.
Ela admirou sua silhueta refletida conforme Ellington havia solicitado, e depois de alguns segundos começou a compreender o significado da cena. E  a sua expressão aos poucos começou a se desanuviar.
O rosto, sério e carrancudo, usando pouca pintura e delineando as fortes marcas dos mais de quarenta anos vividos começou a ganhar vida quando ela percebeu enfim a sutileza contida no galanteio do maestro.
Seu rosto se iluminou.
Naquele galanteio residia toda uma lição de vida. Num segundo, ela percebeu o quanto estava deixando de ser bela e simpática por se comportar daquela maneira austera e irracional.
Quando Rosemary sorriu, ela trouxe à tona toda a beleza e a jovialidade dos seus vinte anos. Rosemary Ann Squire teve que admitir que aquele negro tinha charme, tinha inteligência e era extremamente refinado, e havia feito com que ela afinal se conhecesse.
Do lado de fora, Joe Squire não entendia nada, e se mostrou surpreso e desconfiado quando viu a mulher sorrir. “Ela deve ter recebido algum presente”, pensou, sem imaginar que este pudesse ter sido o melhor presente da sua vida.
Esse era Duke Ellington, um verdadeiro cavalheiro que fazia jus ao apelido de infância.

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