AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 5 - O SONHO
(continuação)
Kalamu
ya Salaam é uma pessoa estranha
de nome muito estranho e de atividades não muito ortodoxas. No fundo, suas
esquisitices servem para emoldurar o misto de escritor, ator, poeta e músico que
nele habita carregando consigo toda a bagagem cultural e a alma negra de Nova
Orleans, sua cidade natal.
Foi em Nova
Orleans que Salaam fundou algumas entidades culturais de preservação à
negritude e às origens do jazz – a “NOMMO
Literary Society”, a “360º - A
Revolution Of Black Poets” e a “Runagate
Multimedia”, divulgando com palavras, ações e livros o orgulho da sua raça
e a veia poética das raízes africanas. Foi lá também que ele criou um grupo
performático que atua na direção do blues, do jazz e de outras formas de poesia
e música, chamado “WordBand”.
Kalamu ya Salaam escreveu
uma deliciosa anedota que teria acontecido com Duke Ellington após uma das suas
apresentações em um teatro de uma pequena cidade do interior do Colorado.
Ellington acabara
de encerrar o espetáculo com uma apresentação brilhante de “Perdido”, depois de
dois “bis” e muitos “bravos!” extraídos da platéia em êxtase,
e se retirava para o seu camarim acompanhado por alguns dos seus músicos.
Harry Carney se
declarava especialmente satisfeito pela reação de um público que eles não
acreditavam pudesse vibrar tão intensamente com a apresentação da orquestra, e
Willie Cook se mostrava surpreso com a receptividade do público para com
algumas das músicas apresentadas, pois não acreditava que o sucesso do grupo
pudesse ter chegado até estes lugarejos tão escondidos.
No caminho, uma
pequena multidão se acercava dos músicos à cata de autógrafos.
Ellington ia
driblando o quanto podia, deixando o importante, mas aborrecido encargo para
Harry Carney, Sam Woodyard, Paul Gonsalves e Jimmy Blanton, que se esmeravam em
atender os aficionados da melhor forma possível. No fundo, o público não
saberia mesmo distinguir um músico do outro, e era até possível que aqueles que
ocupavam os lugares mais distantes do palco não conseguissem reconhecer de
perto o próprio Duke.
A noite estava
agradável, e os camarins haviam sido montados do lado de fora do teatro num
jardim cerca de oitenta metros da saída lateral do palco, para que todo o
entourage de Ellington pudesse se
acomodar confortavelmente.
Enquanto
caminhava, pisando o gramado macio, o maestro olhava para o alto e fitava as estrelas
que pontuavam no céu como jóias incrustadas num veludo negro. Com isso, além de
prestar uma homenagem à natureza, ele também conseguia se esquivar dos fãs mais
afoitos.
Mas eis que, a
vinte passos da salvação, ele foi abordado de uma forma mais incisiva: um homem
vestindo um terno cinza ligeiramente amarrotado simplesmente agarrou Duke pelo
cotovelo, obrigando-o a parar e deu um passo à sua frente. Desfez-se em vênias
e se apresentou como Joe Squire – “e
senhora Squire” – acrescentou ele, indicando uma mulher com cara de poucos
amigos que estava parada a seu lado, provavelmente desejosa de estar a
quilômetros dali.
Ellington olhou para
o cavalheiro que tinha a voz, o porte e o maneirismo de um vendedor de seguros,
sorriu o seu maior sorriso e se prontificou em atendê-lo.
Joe Squire queria
um autógrafo sobre a foto de Ellington estampada no programa que fora
distribuído junto com o ingresso, e lhe passou o papel e a caneta, uma Parker
51 de tampa dourada. Enquanto dava o autógrafo, Ellington fitou a senhora
Squire, que esperava impacientemente, estampando no rosto uma expressão entre a
zanga e o enfado.
Era sem dúvida uma
dama sulista, filha de algum fazendeiro falido na época da Depressão e que se
vira forçada a casar com um homem deselegante e simplório como Joe e a abdicar
de fortuna e classe.
A senhora Squire
provavelmente ainda mantinha a arrogância dos tempos de fausto, e provavelmente
não entendia como um homem branco financeiramente bem sucedido como o seu
marido rastejava atrás de um negro para conseguir uma assinatura rabiscada
sobre uma fotografia.
Ellington analisou
a situação em poucos segundos e resolveu tomar uma atitude.
Cumprimentou Joe
Squire efusivamente, agradeceu a sua presença no evento e, voltando o olhar
para a sua mulher, perguntou – “qual é o
nome de sua esposa, senhor Squire?”.
“Rosemary”, respondeu Joe alegremente. E
arrematou – “Rosemary Ann Squire”.
“Belo nome” – disse Ellington. “Rose e Mary. O nome da Virgem emoldurado por
uma flor”.
Ato contínuo,
Ellington dirigiu a palavra à Rosemary, que olhava intrigada, não entendendo
onde a conversa a respeito do seu nome iria chegar.
“Senhora Squire, quero agradecer a sua
gentileza de ter comparecido à minha apresentação. A presença de pessoas como a
senhora em muito valoriza os meus shows. Uma orquestra de classe se sente
gratificada quando é aplaudida por um público de classe”.
Terminando o pequeno
discurso que deixou Rosemary Squire atônita, ele foi além.
“Senhora Squire, peço a gentileza que venha
comigo ao meu camarim. Tenho uma coisa
muito bonita para lhe mostrar” – e apanhando-a delicadamente pelo braço,
começou a se dirigir para o aposento improvisado.
Ambos caminharam
em silêncio os poucos metros que separavam o local do encontro, onde Joe Squire
permanecia estático, com uma expressão de incredulidade estampada no rosto.
Ellington mantinha os olhos charmosos encimando um sorriso sedutor, e Rosemary
seguia a seu lado como um autômato.
Na verdade, ela
estava aterrorizada.
“O que pretende
esse homem?”, ela se perguntava enquanto passava pela sua mente as terríveis
histórias que seu avô contava a respeito dos negros que se vingavam dos
brancos, histórias de sevícia e revanchismo.
Ellington entrou
primeiro, depois a fez entrar, e deixou a porta aberta, para que todos vissem
os seus movimentos. Além de Joe Squire, algumas pessoas se espremeram diante da
porta do camarim, inclusive alguns músicos da orquestra.
Ellington trouxe a
senhora Squire para frente de um cortinado verde-turquesa e lhe disse: “Madame, a senhora vai ver agora a imagem de
uma mulher belíssima”. E abriu o cortinado.
Atrás do cortinado
havia um espelho muito grande, próprio para os artistas se admirarem antes das
apresentações a fim de se certificarem de todos os detalhes do vestuário e da
maquiagem. Rosemary Squire se viu refletida no espelho, o vestido longo cor de
violeta que contrastava com a brancura da pele dos seus braços e rosto.
Ela admirou sua
silhueta refletida conforme Ellington havia solicitado, e depois de alguns segundos
começou a compreender o significado da cena. E
a sua expressão aos poucos começou a se desanuviar.
O rosto, sério e
carrancudo, usando pouca pintura e delineando as fortes marcas dos mais de
quarenta anos vividos começou a ganhar vida quando ela percebeu enfim a
sutileza contida no galanteio do maestro.
Seu rosto se
iluminou.
Naquele galanteio
residia toda uma lição de vida. Num segundo, ela percebeu o quanto estava deixando
de ser bela e simpática por se comportar daquela maneira austera e irracional.
Quando Rosemary
sorriu, ela trouxe à tona toda a beleza e a jovialidade dos seus vinte anos.
Rosemary Ann Squire teve que admitir que aquele negro tinha charme, tinha
inteligência e era extremamente refinado, e havia feito com que ela afinal se
conhecesse.
Do lado de fora,
Joe Squire não entendia nada, e se mostrou surpreso e desconfiado quando viu a
mulher sorrir. “Ela deve ter recebido algum presente”, pensou, sem imaginar que
este pudesse ter sido o melhor presente da sua vida.
Esse era Duke
Ellington, um verdadeiro cavalheiro que fazia jus ao apelido de infância.
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