AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 12 - MÚSICA E LÁGRIMAS
(continuação)
Às nove horas do dia 18 de dezembro, George Thomas Simon tomava o seu café matinal e lia o
costumeiro jornal antes de se debruçar no trabalho.
Ele vivia
confortavelmente instalado num apartamento na Rua 42, no coração de Nova York,
e estava sorvendo o café bem quente com bastante lentidão para apreciar o aroma
que saía da caneca e se espalhava pela sala, espantando o frio da manhã.
Sua mulher lavava
as louças que haviam sobrado do jantar, num bimbalhar de talheres e pratos
fustigado pelo barulho da torneira aberta.
Era mais uma
segunda-feira como outra qualquer. Simon passaria a manhã examinando uma coisa
ou outra e trocando ideias com a esposa Beverly, e à uma da tarde se dirigiria
para a Metronome, afamada revista de jazz da qual ele era o editor-chefe.
Era um serviço que
juntava as duas coisas que Simon mais gostava – a informação jornalística e o
jazz – e ao qual se dedicava vinte e quatro horas por dia, pois eram
incontáveis as vezes que ele atravessava a noite revisando aqui e acolá,
corrigindo a notícia ou adicionando fatos novos, e preparando a nova edição,
cada uma mais precisa do que a outra.
Simon estava neste
estado de graça quando, de repente, seus olhos se fixaram numa manchete
atordoante, e a mão que segurava a caneca tremeu, borrifando um pouco de café na
toalha.
Ele pousou a
caneca sobre a mesa e teve a impressão que as letras do jornal começaram a se
misturar. Seus olhos marejaram e seu coração acelerou.
Estava incrédulo,
boquiaberto e perplexo.
“Oh, my God...” – ele balbuciou arrasado,
enquanto olhava para Beverly, como se estivesse pedindo ajuda.
Beverly se
acercou, preocupada com a expressão do marido, que permanecia pasmo e trêmulo,
o jornal nas mãos.
Em meio às
notícias da libertação da França e do recuo das tropas de Hitler para o território
alemão, os jornais estampavam, no canto inferior esquerdo da primeira página, o
desaparecimento do monomotor que conduzia Glenn Miller em direção a Paris. Logo
abaixo da manchete a notícia concluía que o músico provavelmente havia morrido.
O choque do editor
ia além da comoção natural de saber que um ídolo americano havia sofrido um acidente
aéreo. Glenn Miller podia ser considerado um amigo íntimo, pelas muitas horas
que haviam passado juntos tocando ou conversando sobre o jazz das big bands, assunto no qual Simon era um
especialista.
A história de
George Simon se confundia com a história de Glenn Miller porque Simon começara
a sua vivência dentro do jazz orquestral em 1937, quando teve uma breve
passagem como baterista na primeira orquestra montada por Miller.
A notícia soava,
portanto, como uma pancada na cabeça.
Além de ser uma
pessoa que ainda frequentava o círculo pessoal do bandleader, Simon era apaixonado pelas orquestras de swing e costumava escrever matérias para
jornais e para a Metronome (dali a alguns anos ele lançaria alguns livros sobre
o assunto, como “The Sinatra Report”
em 1965, “The Big Bands” em 1967 e “The Glenn Miller And His Orchestra” em 1974).
O jornal comentava
a notícia de uma maneira sóbria e discreta, sem rodeios, estardalhaços ou
maiores detalhes. O avião transportava o bandleader
e mais dois passageiros, provavelmente militares, cujos nomes foram solenemente
ignorados pela imprensa do dia (dias depois, melhor informados ou talvez por
respeito às outras vítimas, os jornais registraram que os companheiros de
Miller eram o piloto John R.S.Morgan e o tenente-coronel Norman F.Baessell).
Mas a notícia
aziaga era mais que suficiente para deixar George Simon atarantado.
Notas
complementares indicavam que o dia havia estado frio e o tempo bastante nublado
no percurso entre Bedford e Paris e que poderia ter havido alguma nevasca
ocasional, causando algum desvio de rota.
Além do mais,
especulava-se também que o C-64 poderia ter sido abatido por algum bombardeio
alemão extraviado com o qual eventualmente cruzara no caminho.
Mas a notícia mais
aceita era a de que, devido ao mau tempo, o avião tivesse caído sobre o mar do
Canal da Mancha, não havendo sinal de sobreviventes e tampouco qualquer
destroço da aeronave flutuando nas águas do canal.
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Dois dias depois
do acidente, quando o tempo melhorou, Jerry Gray viajou para Paris a fim de
colher mais informações sobre o desaparecimento do amigo e aproveitou para
confirmar o show natalino, que acabou acontecendo como planejado. Mesmo não perdendo
o brilho musical – com a Glenn Miller Orchestra tocando agora sob o seu comando
– o show transcorreu dentro de um clima fúnebre e despertou lágrimas comovidas
nos músicos e em vários entusiastas.
No meio da euforia
francesa causada pela retomada da cidade, dos desfiles sob o Arco do Triunfo e
da volta de exilados famosos que vinham reconstruir o país, o assunto Glenn
Miller foi se perdendo no silêncio, e nem Jerry Gray conseguiu saber mais sobre
o infortúnio.
O Alto Comando
americano se limitou a declarar oficialmente a morte do major, que recebeu
honras militares póstumas em cerimônias pontuadas por discursos e clarinadas.
Afinal, não havia
sequer um corpo a ser velado, e o show teria que continuar.
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Enquanto preparava
uma edição especial da Metronome sobre o desaparecimento do amigo – cuja
matéria acabou sendo o ponto de referência para o livro enfim publicado em 1974
– Simon ponderava e se lembrava de uma conversa sem importância que havia tido
com Miller no intervalo de um ensaio, quando Simon já não mais fazia parte da
orquestra.
Miller se
confessava então um homem valente e determinado em qualquer circunstância, mas
admitia ser um autêntico covarde quando se tratava de viajar de avião.
Naquele tempo
Miller ainda não havia pensado em se alistar, mas tanto o alistamento em si,
que provocaria uma série de mudanças na sua vida, quanto a própria guerra,
amedrontadora por tudo o que representa, não pareciam ter tido o poder de
intimidar o bandleader.
As viagens de
avião, porém, posto que necessárias e obrigatórias, sempre traziam um frio na
barriga do maestro, que dizia se sentir mais à vontade no meio de um tornado em
terra firme do que na placidez de um voo naquelas cascas de noz.
Mas numa conversa
que Simon teve com Jerry Gray meses depois do acidente, o arranjador lhe
afiançou que nada, aparentemente, faria Glenn Miller mudar de ideia com
respeito ao voo daquele dia, embora as condições meteorológicas fossem
precárias, conforme afiançara o próprio piloto, afeito a dirigir aviões em
pleno calor da batalha. Gray foi além, e afirmou que poucas vezes havia visto
Miller tão resoluto e destemido, apesar do seu conhecido pavor por aviões.
O que teria
causado então a sua determinação e teimosia em viajar naquele dia 15 de
dezembro, contra tudo o que o bom senso indicava e contra os seus próprios
temores?
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