AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 17 - O HOMEM POR DETRÁS DO TRONO
Cuthbert
é uma cidadezinha
situada nos confins da Georgia, sul dos Estados Unidos, que o censo do ano 2006
indicava ter apenas 3.509 habitantes.
Situada próximo ao
estado tradicionalmente racista do Alabama, Cuthbert era, ao final do século dezenove,
um santuário onde os poucos moradores negros e brancos coexistiam
pacificamente.
A falta de
oportunidades, no entanto, obrigava muitos dos seus habitantes a procurarem
abrigo na capital, Atlanta, ou mesmo em outras cidades um pouco maiores, como
Macon, Columbus, LaGrange ou Albany, a fim de educarem os seus filhos e
conseguirem empregos para manter a subsistência da família. E assim a
cidadezinha seguia diminuta.
Os Henderson, uma
família negra razoavelmente abastada, haviam conseguido crescer em Cuthbert
agenciando a compra e venda de terras, mas preferiram se mudar para Macon,
aonde o senhor Henderson viria ocupar o cargo de diretor de uma escola técnica.
Com as crianças
crescendo, Macon também se tornou pequena, e o senhor Henderson achou que era
chegada a hora de tentar a vida num lugar que pudesse oferecer melhores
condições para a família, partindo então para a capital após vender suas
propriedades no local.
Ao chegar em
Atlanta, o senhor Henderson comprou outras propriedades e conseguiu se projetar
como um respeitável professor para crianças e adolescentes negros, vivendo sem
maiores percalços como um negro da classe média “que sabia o seu lugar”.
Isto porque em
Atlanta, diferentemente de Cuthbert, brancos e negros não se mesclavam, embora
a separação se processasse de uma forma natural e automática, sem maiores
traumas.
Lá, os jovens
negros preferiam conviver com seus pares “de cor”, deixando os brancos se
agruparem em outra freguesia. Esta discriminação era feita de uma maneira
discreta e confortável, sem que houvesse necessidade de se apelar para qualquer
lei que determinasse uma separação compulsória decretada pelo município ou pelo
estado e sem gerar constrangimentos maiores.
Assim, brancos e
negros viviam relativamente felizes, cada qual cuidando dos seus afazeres sem
interferirem um na vida do outro.
Apoiados por esta
circunstância, os negros tinham condição de se destacarem nos estudos e de
formarem bons profissionais sem terem que passar pelo dissabor de se verem
preteridos por algum branco menos competente. Depois de formados, eles tinham a
própria clientela, formada por negros, é claro, mas sobreviviam sem maiores
problemas.
Desde criança, o
filho mais velho dos Henderson, Fletcher, a quem chamavam pelo apelido de “Smack”, se destacava entre os colegas
negros como um aluno exemplar, principalmente no que dizia respeito às ciências
e à matemática.
Smack era um
garoto vivaz e esperto, e o fato de possuir boas condições financeiras não o
impedia de manter no seu círculo de amigos garotos de diferentes níveis
sociais. Apesar dos outros meninos preferirem pular corda, caçar passarinhos ou
fazer as traquinagens típicas da idade, ele preferia se envolver com música,
participando de reuniões de canto gospel
onde coordenava a garotada, pois sua inteligência diferenciada não demorou a
transformá-lo numa espécie de líder da turma.
Smack adorava as
ciências e a matemática, se identificando razoavelmente com a biologia e a
botânica, e via com curiosidade a classificação das espécies e a sua
nomenclatura latina. No entanto, ele não se dava muito bem com a literatura
inglesa ou americana, nem com gramática, linguagem, ou qualquer outro assunto
voltado para o lado humano da vida, como história e filosofia.
Incentivado pelos
professores, ele também se sentia atraído por invenções, em especial as de
Thomas Alva Edison, que era respeitosamente chamado pelos americanos de “o pai
da eletricidade”, e fazia experimentos físico-químicos que às vezes provocavam
um frio na espinha dos pais, temerosos de que a casa pudesse ir pelos ares.
Paralelamente,
Fletcher e seu irmão Horace também recebiam lições de música, inicialmente por
parte de um pastor da igreja anglicana, depois por um maestro da escola de
música local especialmente contratado pelo seu pai para lhes ministrar aulas
particulares.
Ele
começara a estudar piano clássico tão logo sua família se estabelecera na
capital. Sua predileção pela matemática o fizera perceber que existia uma
íntima relação entre os meandros da aritmética elementar e o fantástico segredo
dos números com os valores das notas musicais, o seu comportamento dentro dos
compassos e a sua subdivisão em tempos específicos.
Fletcher se
dedicou com afinco ao estudo das sonatas de Beethoven, das valsas de Chopin e
dos poemas românticos de Liszt, dominando o instrumento com uma invejável
facilidade para a sua pouca idade.
No início, o rapaz
se preocupava em ler as partituras e reproduzir o mais fielmente possível os
arranjos originais, mas aos poucos, longe dos ouvidos do professor, ele foi
adicionando à música um pouco do seu sentimento pessoal. Não demorou muito para
que Fletcher começasse a se interessar também pela nova música popular criada
no sul dos Estados Unidos que desembarcava em Atlanta, notadamente o ragtime
e o blues.
A Georgia não
ficava muito distante da Louisiana, onde se praticava o jazz chamado de stomp, o ragtime e o blues, e era separada da Louisiana
apenas pelos estados do Alabama e do Mississipi. Apesar de Atlanta estar
localizada no centro do estado, os ecos da música de Scott Joplin, Freddie
Keppard, Buddy Bolden e King Oliver haviam chegado como uma autêntica revolução
musical exibindo o que se processava lá no sul.
Ao contrário do blues de raiz, que chegava à Georgia de
uma maneira anônima, a música de Nova Orleans vinha rotulada e personalizada,
sublinhando os nomes dos autores e dos intérpretes, o que aguçava a curiosidade
do jovem Fletcher “Smack” Henderson. E não somente aguçava a sua curiosidade
como também começava a lhe dar ideias criativas, de modo que ele foi pouco a
pouco misturando as sonatas e as peças sinfônicas com o som dissonante e o novo
estilo pianístico que chegava à cidade.
Parecia claro para
ele que a América estava construindo a sua própria identidade musical, fugindo
do formalismo da música europeia que seu pai estava acostumado a ouvir.
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