terça-feira, 27 de outubro de 2020

 


AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 17 - O HOMEM POR DETRÁS DO TRONO

Cuthbert é uma cidadezinha situada nos confins da Georgia, sul dos Estados Unidos, que o censo do ano 2006 indicava ter apenas 3.509 habitantes.

Situada próximo ao estado tradicionalmente racista do Alabama, Cuthbert era, ao final do século dezenove, um santuário onde os poucos moradores negros e brancos coexistiam pacificamente.

A falta de oportunidades, no entanto, obrigava muitos dos seus habitantes a procurarem abrigo na capital, Atlanta, ou mesmo em outras cidades um pouco maiores, como Macon, Columbus, LaGrange ou Albany, a fim de educarem os seus filhos e conseguirem empregos para manter a subsistência da família. E assim a cidadezinha seguia diminuta.

Os Henderson, uma família negra razoavelmente abastada, haviam conseguido crescer em Cuthbert agenciando a compra e venda de terras, mas preferiram se mudar para Macon, aonde o senhor Henderson viria ocupar o cargo de diretor de uma escola técnica.

Com as crianças crescendo, Macon também se tornou pequena, e o senhor Henderson achou que era chegada a hora de tentar a vida num lugar que pudesse oferecer melhores condições para a família, partindo então para a capital após vender suas propriedades no local.

Ao chegar em Atlanta, o senhor Henderson comprou outras propriedades e conseguiu se projetar como um respeitável professor para crianças e adolescentes negros, vivendo sem maiores percalços como um negro da classe média “que sabia o seu lugar”.

Isto porque em Atlanta, diferentemente de Cuthbert, brancos e negros não se mesclavam, embora a separação se processasse de uma forma natural e automática, sem maiores traumas.

Lá, os jovens negros preferiam conviver com seus pares “de cor”, deixando os brancos se agruparem em outra freguesia. Esta discriminação era feita de uma maneira discreta e confortável, sem que houvesse necessidade de se apelar para qualquer lei que determinasse uma separação compulsória decretada pelo município ou pelo estado e sem gerar constrangimentos maiores.

Assim, brancos e negros viviam relativamente felizes, cada qual cuidando dos seus afazeres sem interferirem um na vida do outro.

Apoiados por esta circunstância, os negros tinham condição de se destacarem nos estudos e de formarem bons profissionais sem terem que passar pelo dissabor de se verem preteridos por algum branco menos competente. Depois de formados, eles tinham a própria clientela, formada por negros, é claro, mas sobreviviam sem maiores problemas.

Desde criança, o filho mais velho dos Henderson, Fletcher, a quem chamavam pelo apelido de “Smack”, se destacava entre os colegas negros como um aluno exemplar, principalmente no que dizia respeito às ciências e à matemática.

Smack era um garoto vivaz e esperto, e o fato de possuir boas condições financeiras não o impedia de manter no seu círculo de amigos garotos de diferentes níveis sociais. Apesar dos outros meninos preferirem pular corda, caçar passarinhos ou fazer as traquinagens típicas da idade, ele preferia se envolver com música, participando de reuniões de canto gospel onde coordenava a garotada, pois sua inteligência diferenciada não demorou a transformá-lo numa espécie de líder da turma.

Smack adorava as ciências e a matemática, se identificando razoavelmente com a biologia e a botânica, e via com curiosidade a classificação das espécies e a sua nomenclatura latina. No entanto, ele não se dava muito bem com a literatura inglesa ou americana, nem com gramática, linguagem, ou qualquer outro assunto voltado para o lado humano da vida, como história e filosofia.

Incentivado pelos professores, ele também se sentia atraído por invenções, em especial as de Thomas Alva Edison, que era respeitosamente chamado pelos americanos de “o pai da eletricidade”, e fazia experimentos físico-químicos que às vezes provocavam um frio na espinha dos pais, temerosos de que a casa pudesse ir pelos ares.

Paralelamente, Fletcher e seu irmão Horace também recebiam lições de música, inicialmente por parte de um pastor da igreja anglicana, depois por um maestro da escola de música local especialmente contratado pelo seu pai para lhes ministrar aulas particulares.

Ele começara a estudar piano clássico tão logo sua família se estabelecera na capital. Sua predileção pela matemática o fizera perceber que existia uma íntima relação entre os meandros da aritmética elementar e o fantástico segredo dos números com os valores das notas musicais, o seu comportamento dentro dos compassos e a sua subdivisão em tempos específicos.

Fletcher se dedicou com afinco ao estudo das sonatas de Beethoven, das valsas de Chopin e dos poemas românticos de Liszt, dominando o instrumento com uma invejável facilidade para a sua pouca idade.

No início, o rapaz se preocupava em ler as partituras e reproduzir o mais fielmente possível os arranjos originais, mas aos poucos, longe dos ouvidos do professor, ele foi adicionando à música um pouco do seu sentimento pessoal. Não demorou muito para que Fletcher começasse a se interessar também pela nova música popular criada no sul dos Estados Unidos que desembarcava em Atlanta, notadamente o ragtime e o blues.

A Georgia não ficava muito distante da Louisiana, onde se praticava o jazz chamado de stomp, o ragtime e o blues, e era separada da Louisiana apenas pelos estados do Alabama e do Mississipi. Apesar de Atlanta estar localizada no centro do estado, os ecos da música de Scott Joplin, Freddie Keppard, Buddy Bolden e King Oliver haviam chegado como uma autêntica revolução musical exibindo o que se processava lá no sul.

Ao contrário do blues de raiz, que chegava à Georgia de uma maneira anônima, a música de Nova Orleans vinha rotulada e personalizada, sublinhando os nomes dos autores e dos intérpretes, o que aguçava a curiosidade do jovem Fletcher “Smack” Henderson. E não somente aguçava a sua curiosidade como também começava a lhe dar ideias criativas, de modo que ele foi pouco a pouco misturando as sonatas e as peças sinfônicas com o som dissonante e o novo estilo pianístico que chegava à cidade.

Parecia claro para ele que a América estava construindo a sua própria identidade musical, fugindo do formalismo da música europeia que seu pai estava acostumado a ouvir.

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