quinta-feira, 29 de outubro de 2020

 


AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 17 - O HOMEM POR DETRÁS DO TRONO
            (continuação)

Corria o ano de 1910, e Smack tinha treze anos.

A família, estabilizada no conforto da classe média, não se deparava com maiores problemas financeiros e continuava apostando que, num futuro próximo, Fletcher “Smack” Henderson seria um farmacêutico ou um químico de renome. Para tanto, ele foi estimulado a se  concentrar seriamente nos estudos que o conduziriam em alguns anos à Universidade Estadual de Atlanta.

Os Henderson se sentiam orgulhosos com o desempenho escolar do jovem, assim como apreciavam seu talento como pianista de salão, quando seus dedos ágeis deslizavam por sobre o teclado, registrando as mais belas peças da musica erudita.

Eles, no entanto, torciam o nariz quando Smack executava aquela música moderna demais para seus ouvidos conservadores. Certas passagens faziam lembrar o canto dos escravos que eles tão bem conheciam, e talvez por isso aquela harmonia lhes parecesse particularmente desagradável.

O sonho acalentado pela família Henderson parecia estar dando certo, pois Fletcher se graduou em 1920 em química e matemática, e deu o seu primeiro passo em busca da fama como cientista ao se mudar para Nova York no mesmo ano, a fim de realizar seus estudos de pós-graduação.

Ele tinha vinte e três anos, muita expectativa e confiança no futuro profissional, e uma tremenda vontade de vencer.

Seria apenas uma questão de tempo para que James Fletcher Hamilton Henderson Jr., fosse laureado doutor em química, matemática e estudos farmacêuticos, e regressasse triunfante para Atlanta a fim de utilizar seus conhecimentos científicos em benefício da sua comunidade.

 

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Ao chegar em Nova York, o provinciano Smack se deparou com os primeiros obstáculos.

Primeiro, o frio com o qual ele não estava acostumado, tanto no que dizia respeito à temperatura como quanto ao relacionamento entre as pessoas. Ao contrário da jovial cidade de Atlanta, onde as pessoas se cumprimentavam e se sorriam, a iluminada, porém carrancuda Nova York transformava os cidadãos em grandes anônimos.

É certo que Smack foi muito bem recebido na cidade por uma amiga da família que lá residia havia alguns anos – uma professora aposentada também vinda de Atlanta – na casa de quem ficou hospedado por algumas semanas. Ele, no entanto, possuía um espírito bastante independente e se sentiu um bocado desconfortável tendo a sua liberdade tolhida. Logo que foi possível, Smack decidiu fazer as malas e morar numa pensão até que as coisas começassem a clarear.

A pensão ficava na animada Rua 12, próxima a bares, lojas e livrarias, e possuía um conveniente piano instalado no salão principal, no qual ele exercitava seus dedos e sua imaginação, chamando a atenção dos outros hóspedes, na sua maioria caixeiros-viajantes de passagem pela cidade, pela forma sincopada com que executava a música negra do momento.

Com o passar do tempo, Henderson começou a perceber que teria dificuldades em ingressar no tal curso de pós-graduação para dar prosseguimento à sua vida acadêmica, pois aparentemente não existiam vagas nas poucas escolas disponíveis na cidade.

Nas cartas que escrevia para os pais, Fletcher demonstrava claramente esta preocupação, e um tom de nostalgia e saudade fluía das suas palavras chorosas. A família, os amigos, a vida sossegada e sem atropelos e principalmente a sinceridade das pessoas haviam ficado para trás, em Atlanta. Nova York era uma metrópole imensa e sem alma, onde as pessoas se desconheciam e competiam entre si, não se importando em passar por cima uns dos outros para obter sucesso ou vantagens.

Não demorou muito para que Fletcher Henderson entendesse que a sua dificuldade em encontrar uma escola não tinha muito a ver com falta de vagas, mas tudo a ver com a sua cor, o que piorou seu estado de espírito.

Apesar de possuir alguns traços caucasianos, por ser fruto de uma miscigenação qualquer havida no passado, Fletcher não deixava de ser um afrodescendente, e isto estava sendo um obstáculo para suas pretensões acadêmicas.

No entanto, ele tinha necessidade de sobreviver por si próprio, pois não queria passar o resto da vida dependendo da mesada que o pai lhe mandava para a sua manutenção. Além do mais, revoltado com a situação, decidiu lutar para provar a si mesmo que venceria mais esta batalha contra a cidade. Fletcher Henderson não se renderia às atitudes racistas de Nova York.

Para tanto, confiando nos seus dotes de pianista, ele começou a trabalhar como divulgador musical para a Companhia de Música Pace-Handy, uma editora de propriedade do músico W.C.Handy e do empreendedor Harry Pace, fazendo demonstração pianística e ajudando a vender partituras.

Tudo começou quando Fletcher procurou Harry Pace, certo de que ele faria tudo para ajudá-lo, pois se tratava de um velho conhecido da família e, tal como Henderson, havia estudado na Universidade de Atlanta. Pace, que se formara em Direito, havia se associado ao músico Handy quando este estava à procura de um parceiro para fundar a editora.

Ao receber Fletcher Henderson, Pace começou a dar tratos à bola a fim de decidir qual serviço arranjar para ele, mas quando o jovem mostrou tamanha intimidade com o piano e com a música, Pace não teve dúvidas em contratá-lo para trabalhar como músico da própria editora.

Assim, quanto mais Fletcher Henderson se afastava da química e da matemática, mais ele se aprofundava na música e no piano. Harry Pace, conhecedor do mercado, ficou maravilhado em ver nele um músico negro que dominava com perfeição tanto as peças eruditas sugeridas pelos clientes quanto o jazz dos anos 1920 que estava em voga na cidade, e em pouco tempo o convidou para ocupar a posição de gerente musical da sua recém-criada gravadora Black Swan Record Company.

Para Henderson, Nova York já não parecia tão fria, pois a música lhe aquecia as veias, mas isto trouxe alguma decepção para papai e mamãe Henderson, que recebiam estas notícias na distante Atlanta sem muito entusiasmo.

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