DESVENTURAS DE UM FIM DE
TARDE
(Excerto - Augusto Pellegrini)
A maré baixa colocava o mar lá na
lonjura, e uma imensa faixa de areia úmida separava a água esverdeada – que no
momento se apresentava tranquila, parecendo uma imensa lagoa – dos bares
rústicos de madeira construídos sobre a duna.
O céu totalmente azul
dispensava qualquer nesga de nuvem, e o sol assoprava o seu bafo quente sobre a
pictórica paisagem tropical.
Espalhados pela areia podiam
ser vistos pequenos restos de coisas que o mar havia vomitado antes de começar
o seu recuo, num fenômeno que se repetia a cada dia por séculos a fio.
A orla estava quase deserta –
afinal era uma terça-feira, três horas da tarde – e poucos boas-vidas tinham
tempo para se aventurar a uma caminhada na praia ou a um instante de lazer
debaixo daquela quase brisa que soprava para reduzir o calor. Algumas crianças
aproveitavam a calmaria da beira da praia para brincar, acompanhadas por
senhoras maduras com cara de avó. Um ou outro cachorro exercitava sua corrida
pouco olímpica à cata de gravetos atirados pelos guris. Um velho senhor fazia
meias flexões até onde sua coluna dorsal podia aguentar.
O bar da praia também estaria
vazio, não fossem as presenças de um casal que trocava juras de amor numa mesa
distante e de dois inseparáveis amigos, que tendo chegado àquele paraíso ainda
pela manhã enfileiravam sobre e sob a mesa uma quantidade razoável de garrafas
de cerveja.
Zé Maria era um bancário
aposentado que há tempos convencera a sua mulher que, por determinação médica,
necessitava de caminhadas na praia pelo menos duas vezes por semana – e o fazia
religiosamente todas as terças e quintas-feiras, sob a supervisão do próprio
médico, chamado Parmênio, também aposentado. A caminhada foi o pretexto, e a
cervejada foi o resultado prático do tratamento médico.
Enquanto estava sóbrio, Zé Maria costumava se
dirigir ao antigo facultativo pelo nome de “doutor Parmênio”, em homenagem à
sua vida hipocrática pregressa mas com o passar dos goles ia perdendo a
reverência.
Parmênio costumava dizer que a melhor cura
para o estresse, esta inconveniência moderna que pouco a pouco vai minando a
nossa capacidade vital, era espairecer e conversar com amigos, de preferência
fora do ambiente doméstico, quebrando a tensão com uma cerveja gelada e
deixando os problemas dentro do bar.
A cumplicidade entre os dois era,
portanto, filosófica e fortemente sedimentada em malte e lúpulo, e uma amizade
fermentada dessa forma só podia ficar fortalecida.
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O zênite do dia havia ficado para trás
já havia cinco horas e o sol estava finalizando o seu cruzeiro diário quando Parmênio
e Zé Maria decidiram que já era hora de voltar para as suas casas, onde os
esperava a peroração habitual das esposas.
Afinal, eles já haviam discutido tudo o
que o conhecimento e a embriaguez lhes permitiram – fatos atuais sobre política
e futebol, fatos de sempre sobre problemas familiares e fatos muito antigos e
difusos, como conquistas amorosas nos áureos tempos em que a testosterona
estava em alta – e como parte da conversa já haviam inclusive resolvido boa
parte dos problemas do mundo.
O mar recomeçava a subir novamente em
direção às pernas do bar, e o céu azul já adquirira uma cor de chumbo, exibindo
lá no alto a mentirosa estrela D’Alva.
Trôpegos, caminharam em direção aos
respectivos carros, um segurando o braço do outro, mostrando que quatro pernas
podem caminhar melhor que duas. Depois, os pneus ficariam a cargo do equilíbrio
e... seja o que Deus quiser.
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