terça-feira, 9 de março de 2021

 


DO OUTRO LADO DO ESPELHO
(Augusto Pellegrini)


          Percorro com os olhos os quatro pontos cardeais que me cercam neste cubículo onde habito há dias, ou anos, ou séculos, pelo que me diz o relógio da minha semiconsciência.

          Estou deprimido, e o mundo que me cerca é este miserável quarto sem luz, de onde tento olhar por uma fresta de janela fechada e vislumbrar um jardim florido e coberto pelo sol, com borboletas coriscando aqui e acolá tendo como fundo um céu de azul sereno retocado por algumas nuvens de algodão.

          O que vejo, no entanto, é um beco imundo sem saída e cheio de detritos, com a face amarga do inverno se avolumando sombria e insetos mortos boiando em poças de água, tornando a paisagem desalentadora como a minha  vida.

          O mundo fede, e o mau cheiro penetra pela fresta da janela como um gás venenoso que me invade as narinas.

          Não encontro ninguém para responder minhas perguntas nem para satisfazer meus questionamentos.

          Grito, e o meu grito se perde no eco do local vazio e fechado, como o lamento de um moribundo dentro de uma masmorra.

          Há um homem no parlatório na sala ao lado, separado de mim por uma parede de vidro tão espessa que não consigo ouvir a sua voz. Tenho a impressão de que o conheço, seu rosto não me é estranho, mas meu torpor me impede de concatenar ideias.

          Ele me olha fixamente nos olhos, e eu percebo que repete tudo o que eu digo, imita meus gestos e, por incrível que pareça, guarda no rosto a mesma expressão desanimada que estampo na cara macilenta de quem não dorme há duas semanas. Pelo menos é isto que me parece, já que a minha noção de tempo está prejudicada pelos meus desvarios.

          Não sei ao certo onde estou nem o que estou fazendo aqui, e a exaustão embota o meu raciocínio.

          Devo estar sonhando, pois de outra forma já teria encontrado uma explicação para esta situação insólita e insustentável – mas dou um murro na porta metálica e a mão dói, mostrando que estou bem acordado.

          Nunca fui uma pessoa brilhante, capaz de grandes descobertas ou conclusões, mas até um animal que age apenas por instinto teria uma noção razoável de onde se encontra. Um rato, uma barata acuada, um inseto, que seja, tem no instinto de sobrevivência o vislumbre de perceber o tamanho do problema em que se meteu.

          Eu, porém, me sinto desgraçadamente inútil e sem rumo.

          Parece que estou numa cela, e o único móvel que preenche este vazio é esta dura cadeira na qual sento e levanto, feita de metal branco e esmaltado, o que me leva a pensar que estou num hospital ou numa sala de interrogatório, sendo psicologicamente atormentado para confessar algum delito que não me lembro de ter cometido.

                                                              -0-0-0-

          Finalmente entendo que o parlatório nada mais é do que um enorme espelho e que meu interlocutor sou eu mesmo.

          Escuto uma voz que soa como se fossem badaladas de um sino no campanário da minha cabeça – “Vamos deixá-lo aí, para que se acalme de vez.     Amanhã podemos transferi-lo para o quarto” – e outra voz, retrucando – “Mas recomende que seja amarrado com as tiras de couro, pois ele pode se tornar novamente perigoso...”.

          Faz se o silêncio, e antes de apagar totalmente a consciência, me vejo estrangulando o vizinho que costumava praticar canto lírico nos domingos de manhã.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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