EU
E A MÚSICA
DIAGONAL
A tranquila cidade de São Paulo oferecia durante os anos
1960 um fantástico circuito de barzinhos que fizeram parte da renovação da
música brasileira logo após o surgimento da bossa nova.
O mapa do bom gosto era praticamente confinado ao bairro da Consolação – Praça Roosevelt
e arredores – onde a noite fervilhava de boa música com Djalma Ferreira, Dick
Farney, Ana Lúcia, Ed Lincoln, Sambalanço Trio, Leny Andrade, Araken Peixoto, Geraldo
Cunha, Luiz Carlos Paraná e tantos outros.
Vários tipos de pessoas se misturavam na noite sem fim, às vezes curtindo um
espetáculo vanguardista no Teatro de Arena ou uma sessão de cinema também
vanguardista no Cine Bijou para depois encerrar a noitada no Bar Redondo, reduto
de toda a fauna boêmia que se possa imaginar, até que chegasse o alvorecer a pleno
sol.
A música corria leve e solta no Farney’s (que depois virou Djalma’s), no Bon
Soir, no Stardust ou no Cave – ou no Lancaster, na Rua Augusta.
Mais adiante, na Vila Buarque, incrustada no quadrilátero dos chamados
inferninhos, também havia a Baiúca (a primeira casa e introduzir este tipo de
show), o Ela Cravo e Canela, o João Sebastião Bar e dois quarteirões acima o
Bar Sem Nome, na região das Faculdades Mackenzie e USP-Filosofia, local
geográfico que foi palco de muita pancadaria entre partidários a favor e contra
a revolução de 1964.
O Bar Sem Nome era o reduto do jovem Chico Buarque (“Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem / manhã parece, carece de
esperar também / para o bem de quem tem bem, de quem não tem vintém ”), de Zé
Keti, quando ele se encontrava na Paulicéia (“Se eu precisar algum dia de ir pro batente não sei o que será / pois
vivo na boemia, e vida melhor não há” – música “Que Será De Mim”, de Ismael Silva), e do também jovem e talentoso
Chico Maranhão, dono da “Mulata Abençoada”
e da “Gabriela”, que bem podiam ser a
mesma pessoa.
Em contraponto com a noite da Praça Roosevelt, não muito longe dali, em outra
praça, a das Bandeiras, que ficava no início da Avenida Nove de Julho, havia o
Claridge (depois Cambridge) Hotel, cujo American bar apresentava o mesmo tipo
de música, mas voltado para aqueles que não exercitavam hábitos noctívagos,
pois abria as portas já no início da noite, para um discreto “happy hour” de shows semiacústicos com a
presença de astros como Zimbo Trio, Manfredo Fest Trio, Bossa Jazz Trio, Alaíde
Costa, Claudette Soares, Pedrinho Mattar Trio, Cesar Camargo Mariano e Johnny
Alf.
O bar do Claridge era o que havia de chique naquele meado de século, uma
mistura da modernidade que começava a dominar o país com a influência da escola
arquitetônica de Brasília e da decoração dos filmes da Atlântida com traços dos
anos 1920 – cadeiras estofadas, mesas e painéis decorados à art-nouveau,
arandelas com luz indireta e vidro fosco desenhado – e um discreto foco de luz
sobre o praticável onde os músicos se apresentavam para o público.
Eu tinha o hábito de frequentar o Claridge na medida em que meus bolsos permitiam,
e passava algumas horas de encantamento sorvendo algumas cubas-libres (se bem
me lembro, com alguns amendoins bem torrados) e me inebriando com aquela música
especial que preenchia o espaço refinado do local.
Mesmo quando não havia algum espetáculo programado ou nos intervalos das
apresentações, o show continuava, pois a casa tocava um west-coast discreto que variava de Chet Baker a Shorty Rogers, ou
alguma coisa estilo third stream que
tanto podia ser o Modern Jazz Quartet como Dave Brubeck e seu quarteto, tudo
para tornar o ambiente realmente acolhedor.
Ao contrário da maioria dos bares e boates, as conversas aconteciam em voz
baixa e não se ouviam as irritantes gargalhadas de algum piadista desprovido da
capacidade de ouvir e entender música de qualidade. O som da casa era perfeito e
realçava os atributos dos músicos e do cantor.
Num daqueles inícios de noite, lá estava eu acompanhado pelo meu amigo José
Roberto “Pulga” Marques, que recebera este apelido porque era miúdo como um
jóquei, mas um pianista competente e um gigante de gosto apurado. Nossa missão
era conferir nos detalhes uma apresentação de Johnny Alf, figura carismática do
movimento pré-bossa nova e do seu derivado, o bossa-jazz.
Como cantor e compositor pré-bossa, Johnny não se alinhava exatamente na nova postura
dogmática da linha Lyra-Menescal-Gilberto, pois sua bossa-jazz tinha traços definitivos do antigo samba-canção de Dolores
Duran e Custódio Mesquita, um pouco da fase inicial de Tom Jobim, e um piano cujo
drive denunciava toda uma escola
jazzística a que ele fora submetido.
Seu forte não era a nova batida do violão trazida por João Gilberto e
compartilhada por Carlos Lyra, Roberto Menescal, Durval Ferreira e outros mais.
Seu forte era um piano impregnado de jazz,
produzindo um som dissonante que variava entre Lennie Tristano e George Shearing.
E um vocal que remetia a Mel Thormé, entoando melodias repletas de dissonâncias
e modulações complicadas.
Pulga tinha a seu crédito o fato de ter-me apresentado ao primeiro LP de Johnny
Alf, chamado “Rapaz de Bem”, que eu frequentemente
ouvia em casa com a atenção e a fascinação que lhe eram merecidas.
Evidentemente, a aquisição de outros discos do cantor seria apenas uma consequência
natural, e a presença de Johnny no Claridge naquela noite foi motivo de festa.
-0-
Enquanto rolava a apresentação, com a malícia e a sutileza de
Johnny Alf – eu e o amigo Pulga, sorvíamos os goles da cuba-libre no copo longo
e suado e ouvíamos em silêncio, absolutamente concentrados, as músicas que iam
se sucedendo – “Ilusão À Toa”, “Fim De Semana Em Eldorado”, “Tudo Distante De Mim”, “Escuta”, “Vem”, “O Que É Amar”, “Céu E Mar”, “Seu Chopin, Desculpe” e outras preciosidades, todas composições de Johnny
Alf, e as deliciosas “Penso Em Você”
(Fernando Lobo e Paulo Soledade), “Feitiçaria”
(Custódio Mesquita e Evaldo Ruy) e “Despedida
De Mangueira” (Benedito Lacerda e Aldo Cabral).
A nossa mesa ficava próxima ao palco.
Enquanto Johnny sorria agradecendo os aplausos depois de mais uma música
cantada em outra interpretação de tirar o chapéu, eu me enchi de coragem e, sob
o olhar curioso do amigo Pulga, pedi, no impulso da empolgação – “Johnny, canta Diagonal!”.
“Diagonal” (Maurício Einhorn e Durval
Ferreira) é uma música que faz parte do seu segundo LP, gravado em 1965 pela
RCA Victor, intitulado exatamente “Diagonal”.
Em “Diagonal” Johnny não canta a
letra da música, mas faz um notável “scat-singing”,
vocalizando como se fosse um instrumento, a exemplo do que havia feito em “Tema Sem Palavras” (dos mesmos Mauricio
Einhorn e Durval Ferreira) e em “Que Vou Dizer Eu?” (Victor Freire e Klécius
Caldas) no primeiro LP em 1961.
No caso de “Diagonal”, porém, ele faz
um duplo “scat-singing”, pois executa
um contracanto com ele próprio.
“Não dá pra cantar essa música” – disse
Johnny gentilmente – “pois falta uma
segunda voz para fazer o contracanto”,
ao que eu, que conhecia a música de cor, tanto o canto quanto o contracanto,
atrevidamente repliquei - “eu posso fazer
a segunda voz...”.
Johnny meditou por alguns segundos, colocou o microfone que ele tinha junto ao
piano mais para o lado, a fim de possibilitar o seu uso para duas pessoas, e simplesmente
me convidou para subir ao palco!
Uma vez atrevido, atrevido e meio.
O baixista e o baterista (não me recordo quem eram) me olharam meio
desconfiados, mas a um sinal de Johnny eles começaram a introdução.
Sem titubear, comecei a cantar com o meu ídolo, respondendo a sua primeira
frase - “Tara (taturá) parutaratutára (pararaturará)...”
- sem me intimidar nem ficar vermelho.
Não me lembro com detalhes como ficou o dueto, mas ao final o público aplaudiu
e o amigo Pulga congratulou-se comigo. Os músicos sorriram, e Johnny continuou
o show como se tudo tivesse sido ensaiado.
Mesmo tendo privado posteriormente de uma certa amizade com Johnny Alf antes de
ele voltar a residir no Rio de Janeiro, graças a alguns amigos que tínhamos em
comum, o “happy hour” do Claridge se
tornou inesquecível, e o breve contato que mantivemos naquela noite apenas comprovou
a grandeza de alma de um artista que compensava a complexidade da sua criação
musical com a simplicidade da sua condição de ser humano.
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