PÁGINAS
ESCOLHIDAS
Extraído de um livro de contos que ainda não foi publicado
(Augusto Pellegrini)
O
TIO E A TIA
O tio e a tia se preparam para visitar a velha doente que,
dizem, está muito mal e precisa de injeções e cataplasmas.
A tia é assim mesmo, caridosa e sempre requisitada quando se trata de cuidar
dos outros.
Durante o dia não é raro aparecerem mulheres com problemas para um benzimento, um
chá ou até um aconselhamento médico – isto eu estou vendo há mais de um mês, desde
quando cheguei para passar as férias neste interior cheio de natureza, sem luz
elétrica, com água de poço, galinheiro, árvores frutíferas e o cachorro Zezinho.
A tia e o tio moram sozinhos com o Zezinho, que gosta muito de mim, e meia
dúzia de galinhas, que me detestam.
Agora é noite, não sei bem o adiantado da hora, mas faz tempo que escureceu e o
tio e a tia se preparam para sair.
O jantar já foi servido e comido, a louça já foi lavada, e o tio foi fumar na
porta da cozinha enquanto eu me entretinha com algumas pedras de dominó
tentando construir um castelo.
A noite está abafada, pode chover a qualquer momento, mas eles têm que sair pra
fazer caridade e pedem para eu ficar em casa – “pode pegar um resfriado,
menino, a gente não vai demorar, a casa da dona Hermília fica bem ali depois do
campo, logo, logo a gente está de volta” – e eu percebo que eles pretendem me
deixar sozinho com os meus fantasmas e com os fantasmas dos outros que estão
espalhados pela casa.
O lampião de querosene bruxuleia a sua chama e faz mover sombras sinistras
projetadas pelos cantos dos móveis enquanto o avô no porta-retrato parece olhar
fixamente para mim cada vez que o tio passa em frente dele com a lanterna de
carbureto que vai usar para atravessar o campo. É uma lanterna mais segura no
caso de uma eventual chuva, pois o avô a usava para caçar rãs e ela nunca se
apagou apesar da área chafurdada e do vento úmido da várzea.
O tio veste um casaco preto e se afasta em direção à porta, fazendo com que sua
imagem refletida no espelho do fundo da cristaleira se transporte parede adentro.
Como um sapo, salto do colchão que foi acomodado no chão da sala à guisa de
cama e me ponho a calçar as botinas - “eu também vou, de qualquer jeito, não
vou ficar aqui sozinho”.
Tenho um calafrio só em pensar que eles poderiam ter saído depois que eu estivesse
dormindo, e um calafrio ainda maior ao lembrar o armário de madeira estalando
na cozinha, como se alguém estivesse a lhe abrir as portas. E também aquela
lufada de vento soando como uma voz pedindo ajuda.
“Então você vai e volta andando, é muito pesado para eu lhe carregar no colo se
você dormir” - diz o tio com um ar aborrecido, como se eu fosse um peso morto a
atrapalhar as suas andanças noturnas.
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