quinta-feira, 10 de agosto de 2017





DO OUTRO LADO DO ESPELHO

Parte Três

Tento fixar a minha mente em algum ponto do passado, mas tudo o que me vem à mente é remoto, são fragmentos de coisas insignificantes ou sem sentido.
Faço um esforço mental tentando reagrupar as ideias e trazer de volta à mente os últimos acontecimentos para reviver as coisas que eu fiz, as que eu não fiz e que me fizeram, as que eu disse, as que eu não disse ou que me disseram.
Sei que sou um professor de Filosofia, e atualmente estou transitando pelo Período Pós Socrático – ceticismo, epicurismo, estoicismo – em uma faculdade pública e sei também que detesto alunos desatentos e desinteressados. Quem sabe não venha daí a explicação para esta situação ridícula em que me encontro?
Janus, este o nome do aluno, confundiu – propositalmente, creio eu – o Marco Aurélio sábio com o Marco Aurélio imperador, que vieram a este mundo com duzentos anos e milhares de propósitos de diferença! Ele ouviu os justos desaforos de quem passou anos a fio sobre livros e tratados, e respondeu descaradamente que “filosofia é uma ciência com a qual ou sem a qual o mundo continua tal e qual”.
Um verdadeiro patife, esse Janus. Deveria tê-lo matado, no ato.
É como dizer a um jardineiro que seu canteiro de rosas parece uma horta de repolhos ou para o organista da Catedral de Milão que sua interpretação de Pachelbel soa como um acordeonista bêbado do Quartier Latin.
Mas, intenção belicosa e ofensas verbais à parte, eu jamais me atreveria a deitar-lhe a mão – muito embora ele bem o merecesse – por prezar o meu emprego na faculdade mesmo com a magra remuneração que me é de direito e com o parco reconhecimento da sociedade, dos alunos e até do diretor do Departamento. 
Ou seria o dentista que eu tive a ousadia de incomodar num sábado depois da meia-noite, ele provavelmente já vestido de pijama, meias e touca (pelo menos era o que recomendava a sua aparência quebradiça), que por vingança extraiu-me um molar com a saúde de um dente de cavalo por não diagnosticar adequadamente uma simples (simples?!) nevralgia do nervo trigêmeo mandibular, cuja dor cessou após o farmacêutico de plantão no domingo haver receitado qualquer coisa à base de carbamazepina, que parece nome de um tipo de pizza, mas provou ser um potente analgésico.
Tive o impulso de ir ao consultório do dentista na segunda-feira para arrancar-lhe o gorgomilo e acho que só não o fiz por conta do dente extraído que sangrava dentro da boca na medida em que eu me agitava, ou pelos rogos da minha mulher. Não sei bem qual foi a causa, qual foi o caso, nem me lembro agora se algum dia eu não cheguei a fazer justiça com as minhas próprias mãos contra aquele energúmeno.
Pode ser também o vendedor de apólices de seguro que me incomodava na hora do almoço duas ou três vezes por semana, fosse durante o pasto propriamente dito ou – pior – durante a sesta tradicional e terapêutica, principalmente quando eu lhe disse depois da milésima vez que não iria adquirir seguro de vida algum por achar que não morreria tão cedo e ele – talvez tentando ser engraçado – respondeu que “quanto a isso, a gente pode dar um jeito”.
Não me lembro de se saí do sério nem como, mas com certeza meus instintos homicidas – são vários – afloraram à pele, com consequências incertas e desconhecidas.
A noite agora chega de vez, e meu interlocutor no parlatório já se desvaneceu como de resto as sombras que tomaram conta da sala. Brilha agora no teto uma luz fraca e amarelada que me serve de referência e me ajuda a localizar a cadeira, na qual me sento, exausto e desorientado.
Ouço atrás de mim um ruído de chave girando numa fechadura dessas antigas, e então dois fantasmas totalmente brancos invadem a minha solidão, agora são três e então quatro, e me agarram com brutalidade, e me imobilizam como o faria um grupo paramilitar a um facínora qualquer.
Dois deles me seguram com energia, um terceiro estica meu braço que se distende à força e me desestimula a lutar enquanto o quarto homem de branco enfia uma agulha no meu braço causando uma dor lancinante que me faz urrar como um touro sendo castrado.
Uma ligeira olhada no parlatório ao lado mostra uma cena inusitada no lusco-fusco do vidro: meu interlocutor também está às voltas com homens de branco que finalmente o deixam livre, ao mesmo tempo em que meus algozes me largam prostrado na cadeira.
Finalmente entendo que o parlatório nada mais é do que um enorme espelho e que meu interlocutor sou eu mesmo.
Escuto uma voz que soa como se fossem badaladas de um sino no campanário da minha cabeça – “Vamos deixá-lo aí, para que se acalme de vez. Amanhã podemos transferi-lo para o quarto” – e outra voz, retrucando – “Mas recomende que seja amarrado com as tiras de couro, pois ele pode se tornar novamente perigoso...”.
Faz se o silêncio, e antes de apagar totalmente a consciência, me vejo estrangulando o vizinho que costumava praticar canto lírico nos domingos de manhã.



2013


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