DO OUTRO LADO DO
ESPELHO
Parte Três
Tento fixar a minha mente em algum ponto do passado, mas
tudo o que me vem à mente é remoto, são fragmentos de coisas insignificantes ou
sem sentido.
Faço um esforço mental tentando reagrupar as ideias e trazer
de volta à mente os últimos acontecimentos para reviver as coisas que eu fiz, as
que eu não fiz e que me fizeram, as que eu disse, as que eu não disse ou que me
disseram.
Sei que sou um professor de Filosofia, e atualmente estou transitando
pelo Período Pós Socrático – ceticismo, epicurismo, estoicismo – em uma faculdade
pública e sei também que detesto alunos desatentos e desinteressados. Quem sabe
não venha daí a explicação para esta situação ridícula em que me encontro?
Janus, este o nome do aluno, confundiu – propositalmente,
creio eu – o Marco Aurélio sábio com o Marco Aurélio imperador, que vieram a
este mundo com duzentos anos e milhares de propósitos de diferença! Ele ouviu
os justos desaforos de quem passou anos a fio sobre livros e tratados, e
respondeu descaradamente que “filosofia é uma ciência com a qual ou sem a qual
o mundo continua tal e qual”.
Um verdadeiro patife, esse Janus. Deveria tê-lo matado, no
ato.
É como dizer a um jardineiro que seu canteiro de rosas
parece uma horta de repolhos ou para o organista da Catedral de Milão que sua
interpretação de Pachelbel soa como um acordeonista bêbado do Quartier Latin.
Mas, intenção belicosa e ofensas verbais à parte, eu jamais
me atreveria a deitar-lhe a mão – muito embora ele bem o merecesse – por prezar
o meu emprego na faculdade mesmo com a magra remuneração que me é de direito e
com o parco reconhecimento da sociedade, dos alunos e até do diretor do
Departamento.
Ou seria o dentista que eu tive a ousadia de incomodar num
sábado depois da meia-noite, ele provavelmente já vestido de pijama, meias e
touca (pelo menos era o que recomendava a sua aparência quebradiça), que por
vingança extraiu-me um molar com a saúde de um dente de cavalo por não
diagnosticar adequadamente uma simples (simples?!) nevralgia do nervo trigêmeo
mandibular, cuja dor cessou após o farmacêutico de plantão no domingo haver
receitado qualquer coisa à base de carbamazepina, que parece nome de um tipo de
pizza, mas provou ser um potente analgésico.
Tive o impulso de ir ao consultório do dentista na
segunda-feira para arrancar-lhe o gorgomilo e acho que só não o fiz por conta
do dente extraído que sangrava dentro da boca na medida em que eu me agitava,
ou pelos rogos da minha mulher. Não sei bem qual foi a causa, qual foi o caso,
nem me lembro agora se algum dia eu não cheguei a fazer justiça com as minhas
próprias mãos contra aquele energúmeno.
Pode ser também o vendedor de apólices de seguro que me
incomodava na hora do almoço duas ou três vezes por semana, fosse durante o
pasto propriamente dito ou – pior – durante a sesta tradicional e terapêutica,
principalmente quando eu lhe disse depois da milésima vez que não iria adquirir
seguro de vida algum por achar que não morreria tão cedo e ele – talvez tentando
ser engraçado – respondeu que “quanto a isso, a gente pode dar um jeito”.
Não me lembro de se saí do sério nem como, mas com certeza
meus instintos homicidas – são vários – afloraram à pele, com consequências
incertas e desconhecidas.
A noite agora chega de vez, e meu interlocutor no parlatório
já se desvaneceu como de resto as sombras que tomaram conta da sala. Brilha agora
no teto uma luz fraca e amarelada que me serve de referência e me ajuda a
localizar a cadeira, na qual me sento, exausto e desorientado.
Ouço atrás de mim um ruído de chave girando numa fechadura
dessas antigas, e então dois fantasmas totalmente brancos invadem a minha
solidão, agora são três e então quatro, e me agarram com brutalidade, e me
imobilizam como o faria um grupo paramilitar a um facínora qualquer.
Dois deles me seguram com energia, um terceiro estica meu
braço que se distende à força e me desestimula a lutar enquanto o quarto homem
de branco enfia uma agulha no meu braço causando uma dor lancinante que me faz urrar
como um touro sendo castrado.
Uma ligeira olhada no parlatório ao lado mostra uma cena
inusitada no lusco-fusco do vidro: meu interlocutor também está às voltas com
homens de branco que finalmente o deixam livre, ao mesmo tempo em que meus
algozes me largam prostrado na cadeira.
Finalmente entendo que o parlatório nada mais é do que um
enorme espelho e que meu interlocutor sou eu mesmo.
Escuto uma voz que soa como se fossem badaladas de um sino
no campanário da minha cabeça – “Vamos deixá-lo aí, para que se acalme de vez.
Amanhã podemos transferi-lo para o quarto” – e outra voz, retrucando – “Mas
recomende que seja amarrado com as tiras de couro, pois ele pode se tornar
novamente perigoso...”.
Faz se o silêncio, e antes de apagar totalmente a
consciência, me vejo estrangulando o vizinho que costumava praticar canto
lírico nos domingos de manhã.
2013
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