O
VASO ROXO
(Parte
quatro)
O vaso roxo virou um grande sucesso de público.
Os amigos que nos visitavam sentiam-se atraídos pelo seu brilho extraordinário, e eu mesmo tinha a impressão que à noite, mesmo quando a sala estava às escuras, ele ainda brilhava como se armazenasse luz no seu interior ou como se o cristal tivesse minúsculas partículas fosforescentes na sua estrutura.
Eu achava estranho e espantoso, mas gostava do interessante fenômeno. Minha mulher, no entanto, começou a sentir-se incomodada e, muito embora nada de anormal estivesse acontecendo com as nossas vidas, ela cismou que o bendito vaso tinha alguma coisa de sobrenatural e quis se livrar dele.
Eu não sabia como proceder, pois não gostaria de jogar fora o presente de um amigo, mas a solução subitamente bateu à nossa porta.
Um velho amigo nos visitou certa noite para um bate-papo regado a cerveja e salgadinhos e tanto elogiou o brilhoso objeto que acabamos por oferecê-lo como presente.
A princípio ele não quis aceitar, mas minha mulher justificou que o vaso não estava combinando com a decoração da sala nem com as cores dos outros objetos dispostos aqui e acolá e que de qualquer forma iria tirá-lo da sala e trancá-lo dentro de um armário.
Depois de mais algumas cervejas para celebrar a doação, lá se foi o amigo carregando com o vaso, desta vez dentro de uma sacola de uma loja de grife.
Fiquei dois ou três anos sem ver o amigo, até nos encontrarmos casualmente num supermercado.
Conversamos rapidamente as casualidades de sempre, e antes de se despedir ele finalmente fez menção ao bendito vaso.
O objeto caíra no agrado de uma namoradinha que estava frequentando o apartamento e, entre um agrado daqui e um beicinho dali, ele acabou cedendo – até porque ela também cedeu – e o vaso roxo mudou mais uma vez de residência.
Meu amigo continuou se encontrando com a namoradinha até que um dia ela comentou entristecida que a sua diarista “de confiança” havia feito um raspa no seu quarto, levando uma corrente de ouro branco que ela guardava numa gaveta destrancada, algumas bijuterias sem muito valor, dois CDs de música sertaneja, um par de sandálias de marca e o malfadado vaso roxo.
Depois disso, nunca mais voltei a ouvir qualquer comentário sobre o tão luminoso objeto do desejo de tanta gente.
Até que um dia, precisei ir a um velório que estava sendo realizado na capela de um cemitério, cujo ponto culminante seria o enterro, é claro, com direito a orações, lágrimas e fisionomias de praxe.
Não sou muito amante destas reuniões fúnebres, talvez porque deteste pensar que algum dia, num futuro que eu espero ainda esteja distante, serei objeto das mesmas reverências e das mesmas obrigatoriedades, talvez por saber que este entreato representa um encontro com a crua realidade da qual não se consegue escapar, ou talvez por vislumbrar no semblante de muitos presentes um sinal de impostura e hipocrisia.
Mas o morto, no caso, era um parente distante cujo relacionamento se resumia a encontros fortuitos numa festa de aniversário, casamento ou enterro – obviamente de outrem – e a minha presença no enterro era mais uma obrigação social do que sentidas e sinceras condolências.
Terminada a cerimônia, o caixão já devidamente depositado no que eufemisticamente é chamado de “a última morada”, vou caminhando por entre as alamedas ao lado da minha esposa, ambos abatidos, não pela devoção de pudéssemos nutrir pelo defunto, mas pelo clima psicologicamente negativo que todo enterro traz.
Sigo cabisbaixo serpenteando pelos canteiros, e entre o curioso e o distraído, vou lendo os nomes dos inquilinos dos jazigos, gravados em baixo relevo ou pintados de dourado junto com as datas de nascimento e morte, ao lado de flores murchas, velas apagadas e retratos de outros tempos.
Aremildo Boaventura Gatto, Concita da Purificação Valadares, Zaqueu Tremolim – parece que os mortos sempre têm nomes estranhos e fora de moda – neste aqui um jarro de porcelana, naquele outro a estátua de um anjo, tudo como convém a um bom cemitério.
Eis que me deparo com uma surpresa de tirar o fôlego, pois logo depois de um Antenor Belderagas Cruz, surge um túmulo cujo titular tinha muito a ver com o meu passado: lá estava, gravado em granito escuro, mas perfeitamente legível mesmo à luz do fim da tarde que tornava o crepúsculo acinzentado, o nome Giovanni Amedeo Minotti.
Na foto amarronzada sobre porcelana, estava impressa a sua careca luzidia e a sua expressão de pândego.
Ao seu lado havia uma outra foto, de aparência mais antiga, mas que eu obviamente sabia ser bem mais recente, retratando uma mulher de rosto lívido, portando na face uma expressão vampiresca.
E um nome, escrito com letras menores: Leocádia Efigênia Bustamante Minotti.
Sobre o túmulo, iridescente sob o fulgor da última claridade do dia, estava o meu antigo vaso roxo.
Os amigos que nos visitavam sentiam-se atraídos pelo seu brilho extraordinário, e eu mesmo tinha a impressão que à noite, mesmo quando a sala estava às escuras, ele ainda brilhava como se armazenasse luz no seu interior ou como se o cristal tivesse minúsculas partículas fosforescentes na sua estrutura.
Eu achava estranho e espantoso, mas gostava do interessante fenômeno. Minha mulher, no entanto, começou a sentir-se incomodada e, muito embora nada de anormal estivesse acontecendo com as nossas vidas, ela cismou que o bendito vaso tinha alguma coisa de sobrenatural e quis se livrar dele.
Eu não sabia como proceder, pois não gostaria de jogar fora o presente de um amigo, mas a solução subitamente bateu à nossa porta.
Um velho amigo nos visitou certa noite para um bate-papo regado a cerveja e salgadinhos e tanto elogiou o brilhoso objeto que acabamos por oferecê-lo como presente.
A princípio ele não quis aceitar, mas minha mulher justificou que o vaso não estava combinando com a decoração da sala nem com as cores dos outros objetos dispostos aqui e acolá e que de qualquer forma iria tirá-lo da sala e trancá-lo dentro de um armário.
Depois de mais algumas cervejas para celebrar a doação, lá se foi o amigo carregando com o vaso, desta vez dentro de uma sacola de uma loja de grife.
Fiquei dois ou três anos sem ver o amigo, até nos encontrarmos casualmente num supermercado.
Conversamos rapidamente as casualidades de sempre, e antes de se despedir ele finalmente fez menção ao bendito vaso.
O objeto caíra no agrado de uma namoradinha que estava frequentando o apartamento e, entre um agrado daqui e um beicinho dali, ele acabou cedendo – até porque ela também cedeu – e o vaso roxo mudou mais uma vez de residência.
Meu amigo continuou se encontrando com a namoradinha até que um dia ela comentou entristecida que a sua diarista “de confiança” havia feito um raspa no seu quarto, levando uma corrente de ouro branco que ela guardava numa gaveta destrancada, algumas bijuterias sem muito valor, dois CDs de música sertaneja, um par de sandálias de marca e o malfadado vaso roxo.
Depois disso, nunca mais voltei a ouvir qualquer comentário sobre o tão luminoso objeto do desejo de tanta gente.
Até que um dia, precisei ir a um velório que estava sendo realizado na capela de um cemitério, cujo ponto culminante seria o enterro, é claro, com direito a orações, lágrimas e fisionomias de praxe.
Não sou muito amante destas reuniões fúnebres, talvez porque deteste pensar que algum dia, num futuro que eu espero ainda esteja distante, serei objeto das mesmas reverências e das mesmas obrigatoriedades, talvez por saber que este entreato representa um encontro com a crua realidade da qual não se consegue escapar, ou talvez por vislumbrar no semblante de muitos presentes um sinal de impostura e hipocrisia.
Mas o morto, no caso, era um parente distante cujo relacionamento se resumia a encontros fortuitos numa festa de aniversário, casamento ou enterro – obviamente de outrem – e a minha presença no enterro era mais uma obrigação social do que sentidas e sinceras condolências.
Terminada a cerimônia, o caixão já devidamente depositado no que eufemisticamente é chamado de “a última morada”, vou caminhando por entre as alamedas ao lado da minha esposa, ambos abatidos, não pela devoção de pudéssemos nutrir pelo defunto, mas pelo clima psicologicamente negativo que todo enterro traz.
Sigo cabisbaixo serpenteando pelos canteiros, e entre o curioso e o distraído, vou lendo os nomes dos inquilinos dos jazigos, gravados em baixo relevo ou pintados de dourado junto com as datas de nascimento e morte, ao lado de flores murchas, velas apagadas e retratos de outros tempos.
Aremildo Boaventura Gatto, Concita da Purificação Valadares, Zaqueu Tremolim – parece que os mortos sempre têm nomes estranhos e fora de moda – neste aqui um jarro de porcelana, naquele outro a estátua de um anjo, tudo como convém a um bom cemitério.
Eis que me deparo com uma surpresa de tirar o fôlego, pois logo depois de um Antenor Belderagas Cruz, surge um túmulo cujo titular tinha muito a ver com o meu passado: lá estava, gravado em granito escuro, mas perfeitamente legível mesmo à luz do fim da tarde que tornava o crepúsculo acinzentado, o nome Giovanni Amedeo Minotti.
Na foto amarronzada sobre porcelana, estava impressa a sua careca luzidia e a sua expressão de pândego.
Ao seu lado havia uma outra foto, de aparência mais antiga, mas que eu obviamente sabia ser bem mais recente, retratando uma mulher de rosto lívido, portando na face uma expressão vampiresca.
E um nome, escrito com letras menores: Leocádia Efigênia Bustamante Minotti.
Sobre o túmulo, iridescente sob o fulgor da última claridade do dia, estava o meu antigo vaso roxo.
2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário