quarta-feira, 27 de setembro de 2017





O VASO ROXO

(Parte três)


Certa tarde eu recebi um telefonema no local onde estava trabalhando. A secretária que atendeu disse que uma pessoa que se identificava como Leocádia queria falar comigo. Ora, como Leocádia aparentemente só havia uma no mundo, pelo menos no meu mundo, eu atendi entre curioso e levemente desagradado.
Leocádia se desculpou e disse que havia conseguido meu telefone através do antigo escritório de Giovanni, agora tocado por um engenheiro amigo da família.
Ela parecia incomodada com alguma coisa, e pedia para eu ir ao seu apartamento com alguma urgência. Fiquei intrigado, pois não havia construído laços de amizade que me permitisse ser chamado para fazer visitas ou mesmo opinar sobre algum problema, e não conseguia ver outro motivo para ser chamado com aquela urgência.
Garanti que iria vê-la à noite, quando saísse do escritório, e assim o fiz.
O apartamento em que Leocádia morava era localizado em um prédio antigo numa área decadente no centro velho da cidade e parecia ser mais antigo que o próprio prédio. Era repleto de um mobiliário que deve ter sido adquirido em lojas de antiguidades, e quase não havia espaço livre para circulação.
O lugar cheirava a gato, mas eu não vi nenhum gato por lá. Cheirava também a feijão, mas eu não fui convidado para jantar. Sobretudo, cheirava a mofo.
Sentei-me em uma poltrona enorme e exageradamente confortável, dessas que a gente tem dificuldades para depois se levantar.
A aparência de Leocádia piorara sensivelmente desde quando eu a tinha visto na última vez.
Estava lívida e envelhecida, com a expressão sombria, e o seu semblante mostrava algo além da sua proverbial antipatia, revelando um profundo pesar e cansaço e talvez uma dispepsia crônica.
Parecia uma mulher atormentada.
Provavelmente a chama que iluminava aquele ambiente se fora embora com o velho Giovanni e talvez, desde a sua morte, as cortinas não mais se abriram mesmo que fosse para deixar entrar o ar poluído da cidade.
Logo que cheguei, Leocádia me ofereceu um cálice de licor de ameixa, mas ela própria se absteve da bebida. O licor me pareceu um pouco amargo, talvez porque tenha sido feito sem retirar o caroço ou porque estivesse envelhecido demais.
Enquanto eu sorvia o licor a pequenos tragos, ela falou com a voz destituída de emoção que Giovanni se recriminava pelo fato de não ter ido ao meu casamento e muito mais por não ter entregado o presente que havia comprado com tanto carinho.
A caminho do hospital para onde foi levado às pressas com o coração arrebentado, ele se mostrou mais preocupado com o meu presente do que com o seu futuro, e ela sentia agora que o tal presente tinha que ser entregue como uma obrigação póstuma.
Isto posto, Leocádia levantou-se e caminhou em direção ao quarto, tendo que driblar uma banqueta, um jarro enorme cheio de flores artificiais e uma vassoura de pelo, descuidadamente abandonada na soleira da porta que abria o caminho para o corredor.
Passados alguns minutos de silêncio, quando apenas era possível ouvir o ruído do tráfego oito andares abaixo e um ou outro arrastar de caixas, ela reapareceu com um pacote embalado em um papel de presente bastante amarelado pelo tempo.
Recebi o pacote, dei o gole final no licor, agradeci pela atenção e me despedi, tendo o cuidado de desviar de alguns entraves que atrapalhavam o caminho para não esfolar a canela.
A noite já caíra e o movimento dos transeuntes diminuíra consideravelmente, tornando fácil a minha caminhada em direção ao carro.
O que quer que estivesse dentro da caixa era razoavelmente pesado, muito embora o pacote não fosse muito grande.
Fui para casa com a impressão de estar transportando uma urna funerária ou um daqueles objetos cabalísticos que parentes e seguidores depositam nos recônditos dos jazigos como homenagem aos seus eternos ocupantes.
Ao chegar em casa, depois do beijo tradicional de boa noite, comentei com a minha mulher a minha aventura do fim do dia, e resolvemos abrir o pacote mesmo antes de jantar.
Tratava-se de um imponente vaso de cristal lapidado, de um roxo imponente que chegava a brilhar quando refletia a luz. O vaso foi colocado na mesinha de centro da sala, ao lado de um cinzeiro de cristal de Murano e de um pequeno enfeite de mesa em forma de elefante, também de cristal, que teve a tromba quebrada e agora se assemelhava a um porco. 

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