terça-feira, 24 de outubro de 2017





RETALHOS E REBOTALHOS

(Parte Cinco)

Ando pela cidade à procura do sax perfeito.     
Estes fabricados por aqui têm todo o aspecto de um bom saxofone, tem a cor, o peso, o jeito e o cheiro do bom saxofone, até parece um bom saxofone, mas quando você sopra e ele desafina um quarto de tom, então vem a vontade de jogar tudo pra cima, e aí você sente falta do Selmer Super Action legítimo, aquele que você um dia já acariciou como a mulher amada e já colou os lábios com ternura naquele biquinho que vibra.
Na verdade, eu ando à cata do fênix, não de um fênix comum, embora avis rara como mosca de cabeça branca, mas de um fênix com asas de ouro, tal o preço de mercado do dito, um absurdo de quase três mil dólares, vejam só se é fácil ser músico neste país!
Não faz sentido pagar esse preço para acompanhar cantores medíocres, para se esconder nos cantos da música, para mendigar emprego num barzinho qualquer e ser demitido a três por quatro de subempregos por subpatrões, para satisfazer o ego dos empresários e clientes e ser esfolado por eles e para tocar, enfim, o que o diabo gosta. Só que o diabo tem um mau gosto desgraçado e faz com que pouco a pouco a gente pague um pouco dos nossos pecados junto com a prestação do sax.
Ando também à procura da paz.
Não da paz dos campos e vergeis, nem a paz eterna dos campos santos, mas a paz dos sossegados, sem ruídos, sem sobressaltos e sem ódio concentrado nas veias, destilado como veneno e venenoso como ar deletério.  
Mas as coisas e as pessoas que me cercam me põem fora de mim, o que só faz aumentar a pressão arterial e o meu nível de adrenalina com seu jeito de ser e de estar, de mal entender, de desentender e de provocar.
Odeio o barulho inoportuno de um escapamento de moto ou de caminhão, principalmente quando estou concentrado em Zoot Sims ou Monteverdi ou quando pretendo ouvir as notícias que me interessam na televisão falastrã e quase inútil. Odeio gente burra, essa que confunde provolone em pedaço com queijo prato em fatia, essa gente que não tem sensibilidade, que não tem percepção, essa gente que não sabe, não quer saber e não se importa com quem sabe das coisas, sempre atentas às inutilidades ou ao que acontece na casa do vizinho.
Odeio o som da televisão quando não estou assistindo televisão e odeio barulhos externos quando estou concentrado na televisão. Odeio barulho de liquidificador e batedeira funcionando, principalmente quando o barman insiste em produzir as delícias da casa no meio do meu improviso.
Odeio máquina de lavar lavando, cachorro uivando e portas batendo como se fosse um festival de fogos. Odeio festival de fogos.
Odeio gente mal-intencionada e irresponsável, os nós-cegos, os pouca-prática, os braços-duros, os ferrolhos, os gambiarras e enfim, todos aqueles que prometem e não cumprem ou aqueles que cumprem errado.
Odeio britadeira e compressor em pleno funcionamento.
E bem neste momento, na esquina onde fica a Casa Bevilacqua, que vende meus artigos musicais, há uma parafernália infernal – “Olha a nova lei do inquilinato!” – grita o vendeiro – “É pra hoje, vaca, galo, porco! – retruca o bilheteiro, enquanto aquela loja de discos mambembe toca o mais novo sucesso de vendas a noventa decibéis.
Assim não dá, eu desisto de procurar o meu Selmer Super Action e me recolho a um pequeno e surrado bar de porta de correr para comer um sanduíche de salsicha da boa com mostarda tipo holandesa, acompanhado de um refrigerante gelado que refresca melhor, igualzinho àquele do anúncio.
O jeito depois é voltar devagarinho pro meu apartamento, pros meus discos e pras minhas partituras, deixando o som horroroso do novo sucesso se perder lá no fundo – ainda bem – pois de outra forma ainda estaria ouvindo aquele zunido dentro da concha acústica da minha orelha.

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Aquele sentimento começou a se solidificar, a ficar mais quente, a ficar mais forte.
De repente, Porfírio Ricky López começou a ter uma preocupação a mais além do saxofone, que ele acariciava e dedilhava e tocava com os lábios e estreitava junto ao peito; ele começou a sentir uma inquietação diferente, de olhar nos olhos negros e tristes da dama da meia noite, com “Round Midnight” assumindo uma importância maior que sequer o próprio Monk jamais experimentara, de aguardar ansioso, incomodado mesmo, pela sexta-feira e dentro da sexta-feira sentir o coração bater esquisito, num compasso descompassado como Brubeck tocando “free”, e de se sentir iluminado ao perceber a porta se abrindo e aquele vulto de mulher adentrando o salão como se caminhasse sobre nuvens.
Ele também estava nas nuvens, de repente mais alegre, mais desenvolto, decolando uma torrente de notas no momento em que ela chegava “round midnight” e até parecia sorrir, com a voz baixa emitindo um som que parecia o sopro de um fagote, mas que soava em seus ouvidos de uma forma intensamente melodiosa.
A troca de olhares resumia tudo, e as notas iam saindo em profusão até que ela se afastasse como uma visão, para se perder no ponto de fuga e terminar fugindo pela madrugada, deixando Ricky frenético aguardando mais uma semana, mais um século, até que viesse a outra sexta-feira e os pelos se lhe eriçassem com a perspectiva de um novo encontro, o sangue circulando mais forte e as pupilas se dilatando, não para se acomodar à meia-escuridão do bar, mas para tentar absorver toda a luz que irradiasse do seu lado melancólico de madona.
A princípio, Ricky não quis acreditar que se tratava de paixão. Para ele tudo era um simples compromisso com o mistério e com a curiosidade, o que fazia com que suas células se agitassem como minhocas no álcool.   
Porém, quando aquele sentimento começou a ficar sólido, a ficar quente e a ficar forte, ele compreendeu que estava apaixonado pela ficção que encontrara naquela mulher. Ela não era um ser vivo, era uma personagem de história em quadrinhos ou de conto de terror, e sua paixão maior não era por ela mulher, mas pelo fascínio que sua imagem representava.
Era preciso falar com ela, sentir até que ponto ela era humana, para então ou se apaixonar definitivamente ou quebrar o encanto e voltar a vê-la como sendo simplesmente um detalhe num canto da tela de um Renoir.


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