RETALHOS
E REBOTALHOS
(Parte
Cinco)
Ando pela cidade à procura do sax
perfeito.
Estes fabricados por aqui têm todo o
aspecto de um bom saxofone, tem a cor, o peso, o jeito e o cheiro do bom
saxofone, até parece um bom saxofone, mas quando você sopra e ele desafina um
quarto de tom, então vem a vontade de jogar tudo pra cima, e aí você sente
falta do Selmer Super Action legítimo, aquele que você um dia já acariciou como
a mulher amada e já colou os lábios com ternura naquele biquinho que vibra.
Na verdade, eu ando à cata do fênix, não
de um fênix comum, embora avis rara como mosca de cabeça branca, mas de um
fênix com asas de ouro, tal o preço de mercado do dito, um absurdo de quase
três mil dólares, vejam só se é fácil ser músico neste país!
Não faz sentido pagar esse preço para
acompanhar cantores medíocres, para se esconder nos cantos da música, para
mendigar emprego num barzinho qualquer e ser demitido a três por quatro de subempregos
por subpatrões, para satisfazer o ego dos empresários e clientes e ser esfolado
por eles e para tocar, enfim, o que o diabo gosta. Só que o diabo tem um mau
gosto desgraçado e faz com que pouco a pouco a gente pague um pouco dos nossos
pecados junto com a prestação do sax.
Ando também à procura da paz.
Não da paz dos campos e vergeis, nem a
paz eterna dos campos santos, mas a paz dos sossegados, sem ruídos, sem
sobressaltos e sem ódio concentrado nas veias, destilado como veneno e venenoso
como ar deletério.
Mas as coisas e as pessoas que me cercam
me põem fora de mim, o que só faz aumentar a pressão arterial e o meu nível de
adrenalina com seu jeito de ser e de estar, de mal entender, de desentender e
de provocar.
Odeio o barulho inoportuno de um
escapamento de moto ou de caminhão, principalmente quando estou concentrado em Zoot Sims ou Monteverdi
ou quando pretendo ouvir as notícias que me interessam na televisão falastrã e quase
inútil. Odeio gente burra, essa que confunde provolone em pedaço com queijo
prato em fatia, essa gente que não tem sensibilidade, que não tem percepção,
essa gente que não sabe, não quer saber e não se importa com quem sabe das
coisas, sempre atentas às inutilidades ou ao que acontece na casa do vizinho.
Odeio o som da televisão quando não
estou assistindo televisão e odeio barulhos externos quando estou concentrado
na televisão. Odeio barulho de liquidificador e batedeira funcionando,
principalmente quando o barman insiste em produzir as delícias da casa no meio
do meu improviso.
Odeio máquina de lavar lavando, cachorro
uivando e portas batendo como se fosse um festival de fogos. Odeio festival de
fogos.
Odeio gente mal-intencionada e
irresponsável, os nós-cegos, os pouca-prática, os braços-duros, os ferrolhos, os
gambiarras e enfim, todos aqueles que prometem e não cumprem ou aqueles que
cumprem errado.
Odeio britadeira e compressor em pleno
funcionamento.
E bem neste momento, na esquina onde
fica a Casa Bevilacqua, que vende meus artigos musicais, há uma parafernália
infernal – “Olha a nova lei do inquilinato!” – grita o vendeiro – “É pra hoje,
vaca, galo, porco! – retruca o bilheteiro, enquanto aquela loja de discos
mambembe toca o mais novo sucesso de vendas a noventa decibéis.
Assim não dá, eu desisto de procurar o
meu Selmer Super Action e me recolho a um pequeno e surrado bar de porta de
correr para comer um sanduíche de salsicha da boa com mostarda tipo holandesa,
acompanhado de um refrigerante gelado que refresca melhor, igualzinho àquele do
anúncio.
O jeito depois é voltar devagarinho pro
meu apartamento, pros meus discos e pras minhas partituras, deixando o som
horroroso do novo sucesso se perder lá no fundo – ainda bem – pois de outra
forma ainda estaria ouvindo aquele zunido dentro da concha acústica da minha
orelha.
-0-0-0-
Aquele sentimento começou a se
solidificar, a ficar mais quente, a ficar mais forte.
De repente, Porfírio Ricky López começou
a ter uma preocupação a mais além do saxofone, que ele acariciava e dedilhava e
tocava com os lábios e estreitava junto ao peito; ele começou a sentir uma
inquietação diferente, de olhar nos olhos negros e tristes da dama da meia
noite, com “Round Midnight” assumindo uma importância maior que sequer o
próprio Monk jamais experimentara, de aguardar ansioso, incomodado mesmo, pela
sexta-feira e dentro da sexta-feira sentir o coração bater esquisito, num
compasso descompassado como Brubeck tocando “free”, e de se sentir iluminado ao
perceber a porta se abrindo e aquele vulto de mulher adentrando o salão como se
caminhasse sobre nuvens.
Ele também estava nas nuvens, de repente
mais alegre, mais desenvolto, decolando uma torrente de notas no momento em que
ela chegava “round midnight” e até parecia sorrir, com a voz baixa emitindo um
som que parecia o sopro de um fagote, mas que soava em seus ouvidos de uma
forma intensamente melodiosa.
A troca de olhares resumia tudo, e as notas
iam saindo em profusão até que ela se afastasse como uma visão, para se perder
no ponto de fuga e terminar fugindo pela madrugada, deixando Ricky frenético
aguardando mais uma semana, mais um século, até que viesse a outra sexta-feira
e os pelos se lhe eriçassem com a perspectiva de um novo encontro, o sangue
circulando mais forte e as pupilas se dilatando, não para se acomodar à
meia-escuridão do bar, mas para tentar absorver toda a luz que irradiasse do
seu lado melancólico de madona.
A princípio, Ricky não quis acreditar
que se tratava de paixão. Para ele tudo era um simples compromisso com o
mistério e com a curiosidade, o que fazia com que suas células se agitassem
como minhocas no álcool.
Porém, quando aquele sentimento começou
a ficar sólido, a ficar quente e a ficar forte, ele compreendeu que estava
apaixonado pela ficção que encontrara naquela mulher. Ela não era um ser vivo,
era uma personagem de história em quadrinhos ou de conto de terror, e sua paixão
maior não era por ela mulher, mas pelo fascínio que sua imagem representava.
Era preciso falar com ela, sentir até
que ponto ela era humana, para então ou se apaixonar definitivamente ou quebrar
o encanto e voltar a vê-la como sendo simplesmente um detalhe num canto da tela
de um Renoir.
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