RETALHOS
E REBOTALHOS
(Parte
Sete – Final)
Quanto
tempo estamos nesta caminhada? Dez minutos, dez horas, dez anos, o tempo é
relativo e a única coisa nele que se manifesta é o tique-taque pulsante da
minha artéria principal, com os batimentos se sucedendo como o ruído contínuo de
uma bomba-relógio.
Ela
se desvia dos obstáculos como eu dos morcegos, leve como flor de picão, e agora
uma garoa fina começa a cair feito neve me fazendo sentir como um Gene Kelly
saltando compassadamente para não perder a distância que nos separa.
Ouço
ao longe o som de um trompete, igual àquele de Buddy Bolden que chegava a
atravessar o Mississipi com uma clareza e uma força tamanhas que mais parecia a
trombeta de Jericó. Tento identificar o tema – “West End Blues” – nada tão
descabido como esta música neste momento, mais apropriado seria “Spellbound” e
uma gargalhada de Bette Davis.
De
repente chegamos a uma praça larga e arborizada, com uma banca de revistas
pintada de cinza, bancos de cimentos, alamedas tortuosas que se cruzam aqui e
ali dividindo canteiros com plantas baixas e algumas flores molhadas pelo
chuvisco que já passou.
Na
minha frente, como pano de fundo, uma decoração digna dos pesadelos de tia
Jerusa, um cemitério de muro baixo, totalmente gradeado, as grades também
pintadas com aquele cinza-prateado para fazer par com a banca de revistas e o
enorme portão todo trabalhado se abrindo lentamente num ranger de gonzos. Ela,
a minha musa, dá um último adeus para o lado de fora acenando para mim e entra
lentamente no meio dos ciprestes, o portão se fechando com mais rangidos e o
ruído de uma corrente se enroscando nas grades fazendo as vezes de uma última
pá de cal. Depois, o silêncio sepulcral e absoluto, restando em cena apenas eu,
meu cabelo arrepiado e embranquecido pelos borrifos da garoa e o coração
tentando voltar ao compasso normal sem sair da boca.
-0-0-0-
Ana
é uma garota muito meiga, um pouco tímida, e possui alta sensibilidade
artística. Gosta de pintar suaves aquarelas, de ler os clássicos franceses e de
ouvir jazz.
Tem
especial preferência pelas músicas da época do bebop, embora não
necessariamente pelo bebop, e quando se espicha na poltrona da sala ouve
baixinho Lover Man, My Funny Valentine e em especial Round Midnight.
Há
alguns meses descobrira um lugar chamado Crème de la Crème que, a despeito da
vulgaridade mundana, daquelas mulheres sem classe que nada tinham a ver com ela
e daqueles homens mal-intencionados que mais de uma vez já lhe haviam feito
propostas impróprias, abrigava um talentoso saxofonista que tocava o que ela
gostava do jeito que ela gostava.
Ana
não tinha certeza, mas acreditava que ele tocava somente para ela. Ele tocava
olhando para ela, e a cada pressão dos seus dedos nas chaves douradas do
instrumento causava em Ana um arrepio profundo, como se aquelas mãos lhe estivessem
proporcionando uma massagem tonificante.
Esta
noite ele abandonara tudo para segui-la, para acompanhá-la. Não chegou perto
dela e Ana, dentro da sua discrição e timidez teve apenas a coragem de lhe dar
um furtivo adeus.
Na
próxima sexta-feira Ana irá falar com ele, explicar que é tudo tão difícil e
que se sente envergonhada, intimidada, vulnerável e pequena.
Ana
vai dizer a ele que não é fácil ser a filha do zelador do cemitério e ter que
morar naquela solidão, no meio das almas.
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