RETALHOS
E REBOTALHOS
(Parte
Quatro)
Reordenando as idéias e voltando ao
cabaré onde presto meus serviços, o Créme de La Créme , o que me chama a
atenção não é aquele cavalheiro de bigode que fala alto enquanto eu toco, nem a
cortina sempre entreaberta do banheiro feminino, nem aquela loira oxigenada com
cara de devoradora de homens que invariavelmente se senta à minha direita
pronta para dar o bote no primeiro japonês ou americano que cair no seu raio de
ação, nem os coquetéis falsificados que custam os olhos da cara e nada mais são
do que chá mate com suco de maracujá de garrafa, que eles chamam de “drinque da
casa especial”.
O que me desperta a curiosidade e
agiliza as pontas dos meus dedos em solos febris (acho que Charlie Parker
também teve uma visão como essa), é aquela criatura entre o amorfo e o
cristalino que aparece todas as sextas por volta da meia-noite, uma mulher
pálida e de grandes olhos tristes, com longos cabelos negros, sempre com o
inevitável vestido longo, esvoaçante, escuro e fosco.
Essa mulher me fascina pela aura
misteriosa, pois parece vir de um mundo diferente, parece desconhecer a luz do
sol, e é a única pessoa que pede para eu tocar “Round Midnight”, a cavernosa obra-prima de Monk, sempre com a voz
rouca e murmurante e sempre a chegar, por volta da meia-noite.
Aí eu faço a música em um solo lânguido,
enquanto os outros músicos, que desconhecem o tema, agradecem comovidos e se
espalham pelo salão aproveitando a deixa para entornar alguma bebida, esticar
as pernas, os dedos e as idéias.
Esse é o momento sublime da noite, eu
trinando as notas com os olhos semicerrados e ela, a vampira, com a expressão
radiante e o olhar misterioso me admirando em êxtase, enquanto eu a fito por
entre uma grade de cílios, uma visão fantástica e surrealista à luz mortiça do
ambiente.
É sempre “Round Midnight”, é sempre por volta da meia-noite, e logo depois
ela se esvai como uma nuvem que flutua em direção à porta de trinco dourado e
passa por ela rumo a uma outra dimensão, não sem antes voltar a cabeça e sorrir
estranhamente para mim.
Ela se vai e o encanto se quebra. Os
músicos retornam, recomeça o funk comercializado e o meu karma recomeça.
Passado o arrepio que me ouriçou todos
os pelos eu volto então à realidade da noite, com meus companheiros, aquele
bigodudo falando ainda mais alto, e a deusa da noite com jeito de artista de
novela mexicana dando um bote certeiro em cima de um camarada alto e claro, com
cara de dólar.
-0-0-0-
Algum dia eu vou largar o meu saxofone e
correr atrás da minha musa da outra dimensão, vou segui-la pelas ruas da cidade
madrugada afora para descobrir em que sarcófago ela mora.
De repente, só ela me estimula e me
entusiasma aqui neste cabaré, pois nas outras noites da semana eu sigo curtindo
aquela expectativa estranha, é como alguém ansiando se encontrar com a própria
morte, é como um trapezista ensaiando um triplo mortal para a noite de estreia.
Esta tensão segue até que chegue novamente a sexta-feira para que eu possa sentir
mais uma vez a sua presença diáfana e misteriosa.
O mistério que ela transmite me faz
lembrar as histórias contadas por tia Jerusa, como naquela vez em que ela despertou
de um sono diferente e se levantou inquieta e afogueada como um sonâmbulo
dentro da madrugada escura, com um súbito desejo, estranho e incomum, de ir à
igreja da Imaculada.
Tia Jerusa sempre fora devota e
igrejeira com suas novenas a suas andanças nas procissões, mas dessa vez tinha
um desejo fremente como se estivesse sendo empurrada, como se estivesse sendo
puxada por alguma mão oculta, e lá foi ela caminhando apressada pelo calçamento
de pedra, a escuridão do céu disfarçando as horas na rua deserta, aqui e ali uma
sombra se movendo, aparecendo e desaparecendo por detrás das árvores, um cão
ganindo um ganido de agonia, um uivo de lobo, e envolta nas trevas foi surgindo
a igreja, esplendorosa no meio da madrugada, as portas escancaradas, o murmúrio
de vozes e um órgão lamuriante.
Tia Jerusa foi se aproximando
hipnotizada e entrou na nave toda iluminada com velas, a fumaça rala subindo
para a abóboda e se confundindo com a pintura das nuvens, o templo repleto de
faces sérias e circunspectas, tudo parecia um sonho, todos com o olhar fixo no
altar sem prestar atenção na tia Jerusa, que perguntava entre emocionada e
incrédula – “mas já é hora da primeira missa?” – enquanto lá no fundo
o padre rezava e reproduzia suas homílias em latim – “Gloria Jesus Sacramentissimum” – ao que todos respondiam “Miserere nobis!”
– e então “Ave Maria gratia plena,
Dominus te cum...” e no ar aquele cheiro forte de cera queimada.
Ao som abafado do órgão, o Réquiem
inacabado que Mozart compôs para o seu próprio féretro, encomendado que fora
pelo sobrenatural, enquanto tia Jerusa ficava cada vez mais inquieta,
insistindo na pergunta – “mas que missa é
esta?” – e, de repente a voz
sussurrada e grave do cavalheiro ao seu lado – “silêncio, senhora, respeite a nossa missa!” – “a nossa missa?” – “sim, a
nossa missa, a missa dos
desencarnados, a missa daqueles que precisam de luz...” – “mas... o senhor...” – “eu morri em mil novecentos e dezessete e
ainda preciso de muita prece para
descansar em paz...” – e a tia saindo aos tropeções e olhando para as
feições sem vida dos fiéis, que murmuravam – “Agnus Dei ora pro nobis
pecatoribus...” – sem mexer os lábios, até que ela reconheceu entre eles a
dona Mariquinha, que a própria tia Jerusa ajudara a lavar,a vestir e a enterrar
há vinte e oito anos atrás, e dona Mariquinha olhando fixamente para minha tia
como a Regan MacNeil naquele quarto endemoninhado de “O Exorcista”, e tia
Jerusa se desesperando em direção à porta, quanto mais corria mais a porta se
distanciava, como num filme de terror.
Aturar olhares indiretos e oblíquos de
uma multidão em transe já não é encorajador, então imagine ter que aturar
olhares de mortos-vivos vestidos de roupa preta cheirando a terra e naftalina,
a pele numa tonalidade cinzenta, com suas sombras se movendo embaladas pelas
chamas coruscantes das velas dos candelabros!
Tia Jerusa, a testa fria, as pernas
trôpegas, o suor escorrendo pela coluna dorsal e ensopando o vestido de algodão
e os braços tremendo como se assaltada por um repentino mal de Parkinson, se
arrastou como pode por entre os fiéis descarnados que esticavam as mãos longas
e ossudas em sua direção, não como uma ameaça, mas como um pedido de socorro.
O órgão continuou tocando um turbilhão
de notas e gemidos, e os sons encheram o ar como há de ser no dia do Juízo
Final.
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