segunda-feira, 23 de outubro de 2017





RETALHOS E REBOTALHOS

(Parte Quatro)

Reordenando as idéias e voltando ao cabaré onde presto meus serviços, o Créme de La Créme, o que me chama a atenção não é aquele cavalheiro de bigode que fala alto enquanto eu toco, nem a cortina sempre entreaberta do banheiro feminino, nem aquela loira oxigenada com cara de devoradora de homens que invariavelmente se senta à minha direita pronta para dar o bote no primeiro japonês ou americano que cair no seu raio de ação, nem os coquetéis falsificados que custam os olhos da cara e nada mais são do que chá mate com suco de maracujá de garrafa, que eles chamam de “drinque da casa especial”.
O que me desperta a curiosidade e agiliza as pontas dos meus dedos em solos febris (acho que Charlie Parker também teve uma visão como essa), é aquela criatura entre o amorfo e o cristalino que aparece todas as sextas por volta da meia-noite, uma mulher pálida e de grandes olhos tristes, com longos cabelos negros, sempre com o inevitável vestido longo, esvoaçante, escuro e fosco.
Essa mulher me fascina pela aura misteriosa, pois parece vir de um mundo diferente, parece desconhecer a luz do sol, e é a única pessoa que pede para eu tocar “Round Midnight”, a cavernosa obra-prima de Monk, sempre com a voz rouca e murmurante e sempre a chegar, por volta da meia-noite.
Aí eu faço a música em um solo lânguido, enquanto os outros músicos, que desconhecem o tema, agradecem comovidos e se espalham pelo salão aproveitando a deixa para entornar alguma bebida, esticar as pernas, os dedos e as idéias.
Esse é o momento sublime da noite, eu trinando as notas com os olhos semicerrados e ela, a vampira, com a expressão radiante e o olhar misterioso me admirando em êxtase, enquanto eu a fito por entre uma grade de cílios, uma visão fantástica e surrealista à luz mortiça do ambiente.
É sempre “Round Midnight”, é sempre por volta da meia-noite, e logo depois ela se esvai como uma nuvem que flutua em direção à porta de trinco dourado e passa por ela rumo a uma outra dimensão, não sem antes voltar a cabeça e sorrir estranhamente para mim.
Ela se vai e o encanto se quebra. Os músicos retornam, recomeça o funk comercializado e o meu karma recomeça.
Passado o arrepio que me ouriçou todos os pelos eu volto então à realidade da noite, com meus companheiros, aquele bigodudo falando ainda mais alto, e a deusa da noite com jeito de artista de novela mexicana dando um bote certeiro em cima de um camarada alto e claro, com cara de dólar.

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Algum dia eu vou largar o meu saxofone e correr atrás da minha musa da outra dimensão, vou segui-la pelas ruas da cidade madrugada afora para descobrir em que sarcófago ela mora.
De repente, só ela me estimula e me entusiasma aqui neste cabaré, pois nas outras noites da semana eu sigo curtindo aquela expectativa estranha, é como alguém ansiando se encontrar com a própria morte, é como um trapezista ensaiando um triplo mortal para a noite de estreia. Esta tensão segue até que chegue novamente a sexta-feira para que eu possa sentir mais uma vez a sua presença diáfana e misteriosa.
O mistério que ela transmite me faz lembrar as histórias contadas por tia Jerusa, como naquela vez em que ela despertou de um sono diferente e se levantou inquieta e afogueada como um sonâmbulo dentro da madrugada escura, com um súbito desejo, estranho e incomum, de ir à igreja da Imaculada.
Tia Jerusa sempre fora devota e igrejeira com suas novenas a suas andanças nas procissões, mas dessa vez tinha um desejo fremente como se estivesse sendo empurrada, como se estivesse sendo puxada por alguma mão oculta, e lá foi ela caminhando apressada pelo calçamento de pedra, a escuridão do céu disfarçando as horas na rua deserta, aqui e ali uma sombra se movendo, aparecendo e desaparecendo por detrás das árvores, um cão ganindo um ganido de agonia, um uivo de lobo, e envolta nas trevas foi surgindo a igreja, esplendorosa no meio da madrugada, as portas escancaradas, o murmúrio de vozes e um órgão lamuriante.
Tia Jerusa foi se aproximando hipnotizada e entrou na nave toda iluminada com velas, a fumaça rala subindo para a abóboda e se confundindo com a pintura das nuvens, o templo repleto de faces sérias e circunspectas, tudo parecia um sonho, todos com o olhar fixo no altar sem prestar atenção na tia Jerusa, que perguntava entre emocionada e incrédula – “mas já é hora da primeira missa?” – enquanto lá no fundo o padre rezava e reproduzia suas homílias em latim – “Gloria Jesus Sacramentissimum” – ao que todos respondiam “Miserere nobis!” – e então “Ave Maria gratia plena, Dominus te cum...” e no ar aquele cheiro forte de cera queimada.   
Ao som abafado do órgão, o Réquiem inacabado que Mozart compôs para o seu próprio féretro, encomendado que fora pelo sobrenatural, enquanto tia Jerusa ficava cada vez mais inquieta, insistindo na pergunta – “mas que missa é esta?” – e, de repente a voz sussurrada e grave do cavalheiro ao seu lado – “silêncio, senhora, respeite a nossa missa!” – “a nossa missa?” – “sim, a nossa missa, a missa dos desencarnados, a missa daqueles que precisam de luz...” – “mas... o senhor...” – “eu morri em mil novecentos e dezessete e ainda preciso de muita prece para descansar em paz...” – e a tia saindo aos tropeções e olhando para as feições sem vida dos fiéis, que murmuravam – “Agnus Dei ora pro nobis pecatoribus...” – sem mexer os lábios, até que ela reconheceu entre eles a dona Mariquinha, que a própria tia Jerusa ajudara a lavar,a vestir e a enterrar há vinte e oito anos atrás, e dona Mariquinha olhando fixamente para minha tia como a Regan MacNeil naquele quarto endemoninhado de “O Exorcista”, e tia Jerusa se desesperando em direção à porta, quanto mais corria mais a porta se distanciava, como num filme de terror.
Aturar olhares indiretos e oblíquos de uma multidão em transe já não é encorajador, então imagine ter que aturar olhares de mortos-vivos vestidos de roupa preta cheirando a terra e naftalina, a pele numa tonalidade cinzenta, com suas sombras se movendo embaladas pelas chamas coruscantes das velas dos candelabros!
Tia Jerusa, a testa fria, as pernas trôpegas, o suor escorrendo pela coluna dorsal e ensopando o vestido de algodão e os braços tremendo como se assaltada por um repentino mal de Parkinson, se arrastou como pode por entre os fiéis descarnados que esticavam as mãos longas e ossudas em sua direção, não como uma ameaça, mas como um pedido de socorro.

O órgão continuou tocando um turbilhão de notas e gemidos, e os sons encheram o ar como há de ser no dia do Juízo Final.

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