Conto premiado em primeiro lugar no XXI
Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995.
SOLILÓQUIO
(Parte Dois)
De nada me serve agora o dinheiro que eu
devia, o que eu não devia e o que me deviam, o que eu não pude gastar, perdi ou
deixei de ganhar. Estivesse eu em Cafarnaum ou no Vale de Caxemira seria a
mesma coisa, assim como em Londres ou Honolulu, e este som abafado do ataúde que
toca con forza o fundo da cova tanto
me lembra a Sinfonia Novo Mundo como a Noite no Monte Calvo.
Observo o padre aspergindo água benta
mecanicamente como se benzesse uma exposição de máquinas agrícolas e vejo mãos
atirando punhados de terra no ritual do derradeiro adeus como manda a tradição
e recomenda a etiqueta. Alguns mais ousados atiram flores, obviamente arrancada
daquela enorme coroa funerária, já que o preço das flores está – desculpem o
brando trocadilho – pela hora da morte.
O senhor baixinho e calvo, portando
óculos de grau com aro fino de metal que eu não conheço nem faço a mínima ideia
de quem possa ser, um oficial de justiça, talvez, um cobrador, quem sabe,
plantado como um pé de couve numa alameda baixa intra lapides, arrisca um olhar para cima como se estivesse olhando
o céu ou simplesmente fitasse as nuvens brancas se deslocando vagarosamente
pelo pálido azul da manhã, mas o que ele faz na realidade é esticar o rabo do
olho para as pernas alvas e o céu de tecido azul da meninota que subiu no
mausoléu ao lado e se debruça sobre a cruz para ver melhor, sem sequer
desconfiar que quem vê melhor é ele.
O pedinte que faz o seu ponto regular na
praça do cemitério coleia entre os participantes do festim que marca o
encerramento do meu curriculum vitae na
esperança de comover algum desavisado e dele arrancar mesmo que alguns poucos
trocados, rejubilando-se no seu íntimo pela vantagem que leva sobre mim, ele
vivo, embora um zero à esquerda, e eu irremediavelmente morto.
O cavalheiro de ares distintos, de
óculos escuros como pede a ocasião, tendo a seu lado uma exuberante garota que
é sua filha, embora ninguém acredite, pensa na conversa que terá daqui a pouco
com o gerente do banco para renovar aquele papagaio incômodo que está lhe
tirando o sono e não percebe os olhares cúpidos dos circunstantes em direção à
sua sensual primogênita.
A reza puxada em voz alta atrapalha a
concentração do baixinho de óculos de grau, que se sente em pecado por estar
olhando para onde não devia neste momento solene, pigarreia e dá dois passos
para a frente não sem antes espiar furtivamente por sobre o ombro num disfarce
canhestro para ver o rosto da pequena cunhã – e não é que a danada é bonitinha?
– ela estendendo ainda mais o seu tenro pescoço para tentar ver pelo menos uma
nesga do caixão que acabara de sumir no fosso, abrindo seus espaços para outros
interessados em anatomia descritiva.
Eu já estou impaciente e espero que
todos esses intrusos comecem a se retirar dos meus domínios para que enfim eu
possa gozar da paz e da tranquilidade a que tenho direito, eu e meus
companheiros de fortuna, com quem estou ávido para iniciar imediatamente o
congraçamento definitivo que irá emoldurar nossos futuros e intermináveis
momentos de solidão e bem estar.
Já me preocupa a movimentação que será
feira por ocasião do sétimo dia, quando provavelmente virão aqui de novo chorar
os mais chegados, e de novo no primeiro mês, e no Dia de Finados, mas a partir
daí as coisas irão se distanciando, a sétima semana, o sétimo mês, o sétimo
ano, a sétima década e assim ad aeternum
per omnia saecula, per omnia tempora.
Lá vão eles enfim se retirando, palrando
alegres como se estivessem saindo de um convescote – “apareça lá em casa”! –
“Até a próxima”! (até a próxima?! – sem dúvida o máximo da insensatez dado o
momento de pesar, ainda que pretenso, e eu aqui no meu trono veja a paisagem se
aquietar e se tingir de cor-de-cinza e de cor de terra, um ou outro mausoléu
negro se elevando nas alturas como um edifício importante.
O último
intruso atravessa o portão em direção à praça, em direção ao mundo, e eu me
recolho dentro do desconhecido.
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