quarta-feira, 15 de novembro de 2017






Conto premiado em primeiro lugar no XXI Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995.

SOLILÓQUIO

(Parte Três)

Quanto tempo passará até que eles parem de chorar no meu túmulo e de rir na minha cara, quanto tempo passará para que eles me esqueçam por completo, quantos meses, quantos anos, quantos séculos?
Quanto tempo passará para que eles deixem de se preocupar com onde estarei agora, se na cova úmida do humo e da chuva ou se em todo lugar, participando sem assombrar?
Aquele baixinho de óculos eu pelo menos não conhecia e ele sequer pensava sobre o meu passado, o meu presente e principalmente o meu futuro, entretido que estava com os olhos vidrados no céu azul da mocinha debruçada, mas este outro baixote vesgo e atarracado de ultrapassadas suíças brancas que bem poderia ser meu irmão, ou meu tio, se diverte impunemente sentado na minha poltrona predileta bebendo do meu vinho e prestando atenção, ou fingindo, às perorações peripatéticas dos parentes bem ou mal intencionados que procuram consolar a minha mãe inconsolável, mãe que é pau pra toda obra, mãe que é pai pra toda hora.
O pai da filha que ninguém acredita que é filha, pois mais parece uma incestuosa concubina, deu até algum dinheiro  para o mendigo que vive escorchando o próximo no templo dos mortos, e o parasita ao invés de agradecer cerrou o punho em sinal de ódio tão logo o pai da filha lhe voltou as costas, qual um Brutus embrutecido, isso eu vi nitidamente, e não foi com os olhos que a terra se encarregará de comer, mas com os olhos clínicos de um fantasma recém-nascido.
A abertura do testamento, então foi uma festa.
O advogado contratado para ler o seu conteúdo e cuidar do inventário, como se eu fosse um almoxarifado de peças, procurava se acomodar para diminuir o incômodo causado pelo bico de papagaio a lhe cutucar o fim da coluna cervical e buscava encontrar algum pequeno tesouro para poder rechear o seu recibo de honorários, insensível à mudez sombria da viúva, às alegres suíças do amigo baixinho que segue entornando goles do meu vinho barato e lança olhares de Casanova em direção à minha mulher, agora ex-mulher, à expressão de perda da minha mãe e à sepulcral face semimorta de tia Idalina, que todos pensavam fosse antes que eu.
Todos atentos, mal sabem que a casa cheia de rachaduras e com a tinta descascada já está hipotecada, que o velho carro de pneus lisos como a sola dos meus antigos chinelos que agora têm um antigo dono já foi vendido para o dono do armarinho, e que o único terreno que na verdade possuo – repito com ênfase – QUE NA VERDADE POSSUO – está cercando meu corpo inerte e mal cheiroso, nem todas as alfazemas do  mundo, nem todas as lavandas hão de disfarçar o indisfarçável cheiro da morte que subitamente me domina, e me encanta e me espanta.
Assim foi com o finado primo Umberto, assim foi com o tio José e com o cunhado Antero, todos que seguiram na grande jornada antes de eu ser chamado para dar explicações – e eu, que andava tão preocupado com meus pecadilhos de sexta-feira vejo de repente que não existe nenhum inferno especial para os sátiros de plantão.
Fosse eu um proxeneta, um traficante, um fiscal ou um biltre assassino, então talvez não enxergasse o meu mundo interior, o meu mundo anterior com esta placidez de quem já está encomendado para o céu, de armas e bagagens.
Mas eu sorri de fato o meu sorriso de névoa ao ver a cara de desânimo dos parentes de rapina durante a divisão do meu espólio e o desalento do homem das suíças que de repente parou de velar a viúva – o relógio que atrasa dez minutos por dia para um herdeiro, as velhas fotografias da família para outro, a caneta-tinteiro com meu nome gravado para aquel’outro, as roupas que servem para o primo Ovídio menos aquela camisa cor de abacate que já está puída e respingada em branco de água sanitária e que vai virar trapo de chão ou cama de gato.
O gato, aliás, procura no fundo do armário aquilo que nunca escondeu, dir-se-ia que procura a minha alma sem saber que a minha alma está aqui, a poucos passos de distância do seu delicado nariz, e não me encontra porque é de dia, se fosse à noite, à noite todos os gatos são médiuns, todos os gatos são linces, todos os gatos são.


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