Conto premiado em primeiro lugar no XXI
Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995.
SOLILÓQUIO
(Parte Três)
Quanto
tempo passará até que eles parem de chorar no meu túmulo e de rir na minha
cara, quanto tempo passará para que eles me esqueçam por completo, quantos
meses, quantos anos, quantos séculos?
Quanto
tempo passará para que eles deixem de se preocupar com onde estarei agora, se
na cova úmida do humo e da chuva ou se em todo lugar, participando sem
assombrar?
Aquele
baixinho de óculos eu pelo menos não conhecia e ele sequer pensava sobre o meu
passado, o meu presente e principalmente o meu futuro, entretido que estava com
os olhos vidrados no céu azul da mocinha debruçada, mas este outro baixote
vesgo e atarracado de ultrapassadas suíças brancas que bem poderia ser meu
irmão, ou meu tio, se diverte impunemente sentado na minha poltrona predileta
bebendo do meu vinho e prestando atenção, ou fingindo, às perorações
peripatéticas dos parentes bem ou mal intencionados que procuram consolar a
minha mãe inconsolável, mãe que é pau pra toda obra, mãe que é pai pra toda hora.
O
pai da filha que ninguém acredita que é filha, pois mais parece uma incestuosa
concubina, deu até algum dinheiro para o
mendigo que vive escorchando o próximo no templo dos mortos, e o parasita ao
invés de agradecer cerrou o punho em sinal de ódio tão logo o pai da filha lhe
voltou as costas, qual um Brutus embrutecido, isso eu vi nitidamente, e não foi
com os olhos que a terra se encarregará de comer, mas com os olhos clínicos de
um fantasma recém-nascido.
A
abertura do testamento, então foi uma festa.
O
advogado contratado para ler o seu conteúdo e cuidar do inventário, como se eu
fosse um almoxarifado de peças, procurava se acomodar para diminuir o incômodo
causado pelo bico de papagaio a lhe cutucar o fim da coluna cervical e buscava
encontrar algum pequeno tesouro para poder rechear o seu recibo de honorários,
insensível à mudez sombria da viúva, às alegres suíças do amigo baixinho que
segue entornando goles do meu vinho barato e lança olhares de Casanova em
direção à minha mulher, agora ex-mulher, à expressão de perda da minha mãe e à
sepulcral face semimorta de tia Idalina, que todos pensavam fosse antes que eu.
Todos
atentos, mal sabem que a casa cheia de rachaduras e com a tinta descascada já
está hipotecada, que o velho carro de pneus lisos como a sola dos meus antigos
chinelos que agora têm um antigo dono já foi vendido para o dono do armarinho,
e que o único terreno que na verdade possuo – repito com ênfase – QUE NA
VERDADE POSSUO – está cercando meu corpo inerte e mal cheiroso, nem todas as
alfazemas do mundo, nem todas as
lavandas hão de disfarçar o indisfarçável cheiro da morte que subitamente me
domina, e me encanta e me espanta.
Assim
foi com o finado primo Umberto, assim foi com o tio José e com o cunhado
Antero, todos que seguiram na grande jornada antes de eu ser chamado para dar
explicações – e eu, que andava tão preocupado com meus pecadilhos de sexta-feira
vejo de repente que não existe nenhum inferno especial para os sátiros de
plantão.
Fosse
eu um proxeneta, um traficante, um fiscal ou um biltre assassino, então talvez
não enxergasse o meu mundo interior, o meu mundo anterior com esta placidez de quem
já está encomendado para o céu, de armas e bagagens.
Mas
eu sorri de fato o meu sorriso de névoa ao ver a cara de desânimo dos parentes
de rapina durante a divisão do meu espólio e o desalento do homem das suíças
que de repente parou de velar a viúva – o relógio que atrasa dez minutos por
dia para um herdeiro, as velhas fotografias da família para outro, a
caneta-tinteiro com meu nome gravado para aquel’outro, as roupas que servem
para o primo Ovídio menos aquela camisa cor de abacate que já está puída e
respingada em branco de água sanitária e que vai virar trapo de chão ou cama de
gato.
O
gato, aliás, procura no fundo do armário aquilo que nunca escondeu, dir-se-ia
que procura a minha alma sem saber que a minha alma está aqui, a poucos passos
de distância do seu delicado nariz, e não me encontra porque é de dia, se fosse
à noite, à noite todos os gatos são médiuns, todos os gatos são linces, todos
os gatos são.
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