Conto premiado em primeiro lugar no XXI
Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995.
SOLILÓQUIO
(Parte Quatro e Final)
Tão
zelosa tempos atrás, minha mãe já não se importa que gatos mexam e remexam nos
nossos seus guardados, nos nossos guardados, nem os ratos, nem os abutres que
reviram as gavetas como a um animal putrefato, nosso santuário, minha
intimidade.
Mas
afinal, o que pretendem os meus detratores? Violentar a minha imagem, já não
tão nítida como era ontem, e antes de ontem, excrementar no meu túmulo, apagar
os traços da minha memória, apoquentar o juízo dilacerado da minha mãe, meu
pai, meu gato, ou simplesmente bisbilhotar sob o pretexto de que da ordem se
faz o progresso, se não muito ético, pelo menos patriótico?
Poucos
hão de se lembrar dos fios de cabelos brancos que brotavam do alto da minha orelha,
fios desafiadores embora desafinados com o negror das sobrancelhas, poucos irão
se lembrar da falha do meu dente incisivo e do pequeno sinal entre os olhos,
mas todos irão se lembrar, relembrar e comentar as minhas falhas e os meus
defeitos, as minhas faltas e os meus preconceitos, os meus insucessos.
Tento
comentar estas vilanias com meus novos vizinhos, mas parece que eles pouco se
incomodam, vai ver que com o passar do tempo eu também ficarei assim
indiferente, assim diferente. Olho para o horizonte e o máximo que consigo ver
é o vazio tisnado de negro, agora que a noite se abate novamente sobre a minha
cidade silenciosa, e o máximo que consigo depreender dos meus companheiros é um
total descaso pelas coisas vãs do mundo dos lobos, do mundo dos gatos.
Sinto-me
leve como nunca me senti e respiro o ar da tranquilidade, muito embora repouse
a carcaça nauseabunda num buraco sem conforto, minha atual propriedade, assim
como foram minha propriedade todas as cadeiras nas quais eu sentei, isto
enquanto sentado, todos os livros que eu li, mesmo sendo emprestados, e todos
os cinemas e teatros que eu frequentei, pois enquanto eu lá estava aquilo era
realmente meu, assim como sempre foi realmente meu este mundo sem o qual ou com
o qual eu não faço absolutamente nada, por uma questão de coerência.
Recordo
novamente a minha última solenidade, igual a tantas que já aconteceram e a
tantas que deverei por força assistir por conta de habitar no natural cenário,
e entendo que de nada vale participar do crime para amealhar fortunas, nem
espionar a vida alheia e comentar seus desvios e desvarios, se a verdade
absoluta se resume e uma chama que se apaga e a uma luz que se acende, dessas
que ninguém vê mas que norteia os nossos passos feito um farol.
Penso
ver um anjo, mas é só um pombo, penso ver um gato, mas é uma ratazana de
cemitério.
O
primeiro intruso se aproxima na manhã enevoada, cruza o portão em direção ao
lado de dentro e eu então me recolho para dentro do conhecido.
Requiescant in pace.
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