A GULA
Conto publicado no livro “O Fantasma da
FM” em 1992.
(Parte 1)
As crianças desciam a ladeira em
ziguezague.
O ruído estridente dos gritos e da
tropelia despertou a senhora de cabelos brancos e camisola cor-de-rosa que
dormitava o sino dos despreocupados. Veio à janela do segundo andar do prédio
de apartamentos revestido de pastilhas também cor-de-rosa, colocou a cara
cinza-esverdeada para fora e semicerrou os olhos fundos tentando filtrar a
luminosidade do dia, desaprovando o barulho e a algazarra.
Era uma algazarra quase feliz, não fora
o estômago vazio e a falta de paternidade daqueles moleques vadios e
inconsequentes, insensatos e enjeitados que ainda não haviam vislumbrado o
tamanho do problema que eles tinham que solucionar, embora já com uma forte
suspeita de que a barra que iriam enfrentar pela vida afora não iria ser um
brinquedo de criança.
A horda descia desorganizada e
esganiçada, provocando o latido dos cachorros, porque todos os cachorros
detestam crianças negras, pobres ou maltrapilhas, assim como detestam
carteiros, mendigos, cegos e vendedores de bilhetes, e não apenas avançam com a
bocarra arreganhada e os dentes ameaçadores como também mordem forte e dolorido
no calcanhar, na panturrilha ou na bunda.
No terreno baldio bem ao lado do prédio
cor-de-rosa, um sugestivo “outdoor” sugeria que comêssemos ovos porque ovos
ajudam o nosso crescimento e nos dão força e vigor, possuem proteínas que
equivalem à carne bovina e calorias necessárias para manter um ser humano vivo
mesmo sem consumir outras fontes energéticas maravilhosas que os americanos
inventaram como o chocolate caramelizado, a vitamina liofilizada ou o açúcar
refinado – e dizem isso sem corar, com o maior descaramento, deixando de
mencionar o colesterol, os triglicérides, o entupimento das artérias e o
diabetes progressivo.
O lixo cerca o cartaz de madeira e é
engolido pelo mato alto que encerra nas suas entranhas algum rato morto, cacos
de vidro daquela garrafa quebrada e alguma lata enferrujada. As moscas se enfileiram
como o rosário de um terço na antena da Kombi enferrujada que está entre o
estacionado e o abandonado junto ao meio-fio, e o vento transporta para o meio
da rua uma tira de papel higiênico que escapuliu do saco de lixo e com suas
firulas ajuda a nausear um pouco a paisagem, agora completa de brasilidade com
a meninada que passa uivando.
O senhor magro e sisudo com a camisa
abotoada até o pescoço sobe a rua em direção contrária e se aborrece e se
arrepia e sente um ligeiro desconforto ao cruzar com os infames – isto na
verdade é um eufemismo, na realidade ale está apavorado! – como quem se vê
obrigado a esgrimir com uma nuvem de gafanhotos. Ele olha de soslaio temendo
encarar seus oponentes e instintivamente põe a mão no bolso traseiro para se certificar
se a carteira com os trocados e os documentos continuam lá, intactos e
protegidos da sanha desses maus elementos, ao mesmo tempo em que brande sua
pasta zero-zero-sete de couro negro um tanto esfolado nas quinas como se fosse
um escudo ou uma clava para afugentar eventuais inoportunos e contra-atacar no
caso de um ataque repentino, como se exorcizam os maus espíritos.
E segue célere, o cenho carregado,
enquanto o bando passa por ele como se ele não existisse.
O dilúvio humano continua a sua devastação
sonora, aperta-se uma campainha aqui, açoda-se um cachorro ali, vira-se ao
contrário aquele espelho retrovisor e faz-se uma vênia velada àquele candidato
a vereador que sorri pregado no poste e já desbotado pelo sabor das chuvas de
verão, exatamente aquele que prometia em campanha proteção ao menor abandonado,
fez discursos antes de eleito e na proclamação da posse e hoje cuida de
terrenos abandonados que juntou aos seus bens, assim como o fazem os invasores do alheio, agindo
silenciosamente nas sombras com a cumplicidade de poucos e o desconhecimento de
muitos.
A rua tem um declive, faz um ângulo com
uma valeta por onde escoam as águas no tempo das chuvas e a partir daí começa
uma subida no mesmo ângulo onde os meninos bem nutridos que moram nas bonitas
casas enfileiradas fazem suas evoluções com bicicletas e patins, e agora também
com pranchas de rodinhas de poliuretano.
No alto da ladeira, já fazendo esquina
com outra rua arborizada e de calçamento antigo, a grama crescendo por entre os
paralelepípedos denunciando a exiguidade do tráfego e algumas florezinhas
colorindo as urzes nas jardineiras desarrumadas mas nem por isso deselegantes,
ergue-se imponente um muro na cor ocre com algumas plantas trepadeiras
agarradas |á superfície ligeiramente desbotada e as maciças colunas dando a
exata medida da robustez da construção arquitetada por um artista de forte
influência otomana.
Defronte o portão principal dormita um
vigilante, desses contratados junto a empresas de segurança patrimonial que
contrapõem um tanto de servilismo ao assoviar do dono a um bocado de
autoritarismo ao se deparar com estranhos, treinado que é qual cão de fila.
Ele desperta e se arma como um
mercenário boina verde, fechando a carranca em parte para assustar os irrequietos
passantes e em parte pelo justo mal humor de quem desperta de um sonho bom por
uma grita de baitacas.
Os garotos passam sem se importar com a
sua zanga ou com a sua farda e se vão em direção a outra mansão, duzentos
metros adiante onde perfilam diversos automóveis de luxo.
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