segunda-feira, 18 de dezembro de 2017





A GULA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 1)


As crianças desciam a ladeira em ziguezague.
O ruído estridente dos gritos e da tropelia despertou a senhora de cabelos brancos e camisola cor-de-rosa que dormitava o sino dos despreocupados. Veio à janela do segundo andar do prédio de apartamentos revestido de pastilhas também cor-de-rosa, colocou a cara cinza-esverdeada para fora e semicerrou os olhos fundos tentando filtrar a luminosidade do dia, desaprovando o barulho e a algazarra.
Era uma algazarra quase feliz, não fora o estômago vazio e a falta de paternidade daqueles moleques vadios e inconsequentes, insensatos e enjeitados que ainda não haviam vislumbrado o tamanho do problema que eles tinham que solucionar, embora já com uma forte suspeita de que a barra que iriam enfrentar pela vida afora não iria ser um brinquedo de criança.
A horda descia desorganizada e esganiçada, provocando o latido dos cachorros, porque todos os cachorros detestam crianças negras, pobres ou maltrapilhas, assim como detestam carteiros, mendigos, cegos e vendedores de bilhetes, e não apenas avançam com a bocarra arreganhada e os dentes ameaçadores como também mordem forte e dolorido no calcanhar, na panturrilha ou na bunda.
No terreno baldio bem ao lado do prédio cor-de-rosa, um sugestivo “outdoor” sugeria que comêssemos ovos porque ovos ajudam o nosso crescimento e nos dão força e vigor, possuem proteínas que equivalem à carne bovina e calorias necessárias para manter um ser humano vivo mesmo sem consumir outras fontes energéticas maravilhosas que os americanos inventaram como o chocolate caramelizado, a vitamina liofilizada ou o açúcar refinado – e dizem isso sem corar, com o maior descaramento, deixando de mencionar o colesterol, os triglicérides, o entupimento das artérias e o diabetes progressivo.    
O lixo cerca o cartaz de madeira e é engolido pelo mato alto que encerra nas suas entranhas algum rato morto, cacos de vidro daquela garrafa quebrada e alguma lata enferrujada. As moscas se enfileiram como o rosário de um terço na antena da Kombi enferrujada que está entre o estacionado e o abandonado junto ao meio-fio, e o vento transporta para o meio da rua uma tira de papel higiênico que escapuliu do saco de lixo e com suas firulas ajuda a nausear um pouco a paisagem, agora completa de brasilidade com a meninada que passa uivando.
O senhor magro e sisudo com a camisa abotoada até o pescoço sobe a rua em direção contrária e se aborrece e se arrepia e sente um ligeiro desconforto ao cruzar com os infames – isto na verdade é um eufemismo, na realidade ale está apavorado! – como quem se vê obrigado a esgrimir com uma nuvem de gafanhotos. Ele olha de soslaio temendo encarar seus oponentes e instintivamente põe a mão no bolso traseiro para se certificar se a carteira com os trocados e os documentos continuam lá, intactos e protegidos da sanha desses maus elementos, ao mesmo tempo em que brande sua pasta zero-zero-sete de couro negro um tanto esfolado nas quinas como se fosse um escudo ou uma clava para afugentar eventuais inoportunos e contra-atacar no caso de um ataque repentino, como se exorcizam os maus espíritos.
E segue célere, o cenho carregado, enquanto o bando passa por ele como se ele não existisse.
O dilúvio humano continua a sua devastação sonora, aperta-se uma campainha aqui, açoda-se um cachorro ali, vira-se ao contrário aquele espelho retrovisor e faz-se uma vênia velada àquele candidato a vereador que sorri pregado no poste e já desbotado pelo sabor das chuvas de verão, exatamente aquele que prometia em campanha proteção ao menor abandonado, fez discursos antes de eleito e na proclamação da posse e hoje cuida de terrenos abandonados que juntou aos seus bens, assim como o  fazem os invasores do alheio, agindo silenciosamente nas sombras com a cumplicidade de poucos e o desconhecimento de muitos.
A rua tem um declive, faz um ângulo com uma valeta por onde escoam as águas no tempo das chuvas e a partir daí começa uma subida no mesmo ângulo onde os meninos bem nutridos que moram nas bonitas casas enfileiradas fazem suas evoluções com bicicletas e patins, e agora também com pranchas de rodinhas de poliuretano.
No alto da ladeira, já fazendo esquina com outra rua arborizada e de calçamento antigo, a grama crescendo por entre os paralelepípedos denunciando a exiguidade do tráfego e algumas florezinhas colorindo as urzes nas jardineiras desarrumadas mas nem por isso deselegantes, ergue-se imponente um muro na cor ocre com algumas plantas trepadeiras agarradas |á superfície ligeiramente desbotada e as maciças colunas dando a exata medida da robustez da construção arquitetada por um artista de forte influência otomana.
Defronte o portão principal dormita um vigilante, desses contratados junto a empresas de segurança patrimonial que contrapõem um tanto de servilismo ao assoviar do dono a um bocado de autoritarismo ao se deparar com estranhos, treinado que é qual cão de fila.   
Ele desperta e se arma como um mercenário boina verde, fechando a carranca em parte para assustar os irrequietos passantes e em parte pelo justo mal humor de quem desperta de um sonho bom por uma grita de baitacas.

Os garotos passam sem se importar com a sua zanga ou com a sua farda e se vão em direção a outra mansão, duzentos metros adiante onde perfilam diversos automóveis de luxo.   

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