O TÁXI
Conto publicado no livro “O Fantasma da
FM” em 1992.
(Parte 1)
Chove a cântaros pela cidade.
De acordo com a emissora de rádio, o seu
loquaz boletim do tempo indica “chuvas esparsas em pontos isolados”, o que na
prática significa que se estiver chovendo está certo, se não estiver chovendo
também está certo, a previsão sempre correta, sempre acurada, sempre preciosa.
São as chuvas de verão, sujeitas a raios
e trovoadas.
Do jeito que chove tanta água, água aos
borbotões, a impressão que se tem é que chove não só na cidade, mas também nos
municípios vizinhos, no estado todo, em todo o país.
A televisão de ontem à noite noticiou
deliciada, com um sabor sensacionalista e sádico na voz do “anchorman” que o
rio transbordou em Santa Catarina deixando ao desabrigo centenas de
ribeirinhos, que chove continuadamente, há quatro dias, no interior gaúcho e
que no Ceará o sertão já virou mar.
E mostram “flashes” jornalísticos de
casas destruídas, gente abrigada no ginásio municipal de esportes, onde nunca
chove, e a diversão dos garotos bem-humorados, nadando e canoando nas águas
barrentas repletas de pseudômonas, coliformes e et caetera e tais.
Aqui, na avenida principal da cidade
grande, coalhada de bancos e instituições financeiras, das inevitáveis galerias
com lojas de todos os matizes e de uma ou outra lanchonete tipo “fast-food” –
dessas que servem sanduiches com gosto de isopor, tanto faz filé de frango,
hambúrguer ou porco na brasa, acompanhado de meio litro de gelo picado em um
copo de refrigerante ou suco – as pessoas driblam os guarda-chuvas e tentam
desesperadamente apanhar um táxi.
Alguns taxistas passam com o carro sem
passageiros, aceleram na hora certa para lançar um pouco da água empoçada do
leito carroçável para cima da calçada, atingindo as pernas dos esperançosos e
desditosos clientes e se divertem com isso – mais do que diversão, é uma
perversão, uma vingança contra a sociedade.
Mas a maioria dos táxis que passam já
vêm lotados, a gente consegue ver a silhueta do passageiro através do vidro
embaçado.
A água corre em direção aos bueiros
razoavelmente desobstruídos – o prefeito desta cidade mantém um eficiente
sistema de conservação e procura conservar a cidade tão limpa quanto os cofres
do município, também desobstruídos – e a água que desaba sobre o chão invade o
solado dos sapatos e lava as pernas nuas das saias molhadas e também as pernas
vestidas de casimira ou jeans.
É o dilúvio vespertino.
Autos e ônibus trafegam com os faróis
ligados, ajudando a sinalizar o caos. O guarda de trânsito se escondeu debaixo
da banca de revistas e por detrás da capa escura de plástico grosso, e o apito,
sempre saudável e estridente nas tardes de sol, agora se esconde rouco e mudo
dentro do bolso da camisa.
A senhora cheia de pacotes, munindo uma
sombrinha que mais ajuda a molhar do que a proteger da cascata incessante,
acena para um táxi que se aproxima devagarinho como se o taxista estivesse
apreciando o pandemônio encharcado.
A garota cheia de livros e sem
guarda-chuva também acena, toda aquática, para o mesmo táxi, a blusa branca toda
fina colada no corpo e fazendo o motorista esticar o pescoço e limpar o vidro dianteiro
com a mão para melhor apreciar essa obra de arte que a natureza criou.
O senhor de idade e meia dentro do seu
terno bege, portando uma pasta preta que faz as vezes de guarda-chuva também
acena, os óculos embaçados e a gravata em desalinho.
Acenam também para o mesmo táxi o
“office-boy” cheio de contas de água e esgoto e outras tantas dentro as
escarcela verde com elástico, o cidadão de porte atlético vestindo jaqueta de
couro e usando um bigode monumental, e o infeliz com cara de infeliz trajando
uma calça branca, a esta altura toda adornada por nódoas cinzentas e
amarronzadas, fruto da água que corre beirando o meio-fio.
O táxi para.
Todos partem para ele em desabalada
carreira como numa corrida de cem metros rasos, a senhora deixando cair um dos
pacotes, a garota deixando arrebentar um botão da blusa – fazendo a água da
chuva caminhar por vales nunca dantes navegados – o senhor de idade e meia
fazendo o seu derradeiro esforço, o “office-boy” se esgueirando como uma cobra
e o grandalhão de bigode formidável acotovelando a tudo e a todos e esmagando o
infeliz com cara e infeliz junto à coluna lateral do carro. Uma verdadeira
prova olímpica.
Surpreendentemente, quem se afunda no
assento do táxi é o senhor de idade e meia, fechando a porta com energia e
quase esmagando o dedo do cavalheiro de jaqueta de couro que, não tão
cavalheiro assim, explode num sonoro “filho da puta!!!” e dá outro coice no
infeliz com cara de infeliz.
A senhora dos pacotes corre atrás
daquele que caiu e está descendo pela torrente em direção ao bueiro.
A garota, indignada com o palavrão e com
a perda do taxi procura com a mão cobrir a natureza exposta pelo botão perdido.
O “office-boy”, resignado como sempre,
sai caminhando pela chuva afora pela avenida afora, convencido da inutilidade
de gastar os trocados recebidos para pegar um táxi quando o melhor é ir a pé,
deslizando como um surfista, e embolsar o dinheiro da corrida.
SEGUE
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