sexta-feira, 22 de dezembro de 2017





O TÁXI

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 1) 

Chove a cântaros pela cidade.
De acordo com a emissora de rádio, o seu loquaz boletim do tempo indica “chuvas esparsas em pontos isolados”, o que na prática significa que se estiver chovendo está certo, se não estiver chovendo também está certo, a previsão sempre correta, sempre acurada, sempre preciosa.
São as chuvas de verão, sujeitas a raios e trovoadas.
Do jeito que chove tanta água, água aos borbotões, a impressão que se tem é que chove não só na cidade, mas também nos municípios vizinhos, no estado todo, em todo o país.
A televisão de ontem à noite noticiou deliciada, com um sabor sensacionalista e sádico na voz do “anchorman” que o rio transbordou em Santa Catarina deixando ao desabrigo centenas de ribeirinhos, que chove continuadamente, há quatro dias, no interior gaúcho e que no Ceará o sertão já virou mar.
E mostram “flashes” jornalísticos de casas destruídas, gente abrigada no ginásio municipal de esportes, onde nunca chove, e a diversão dos garotos bem-humorados, nadando e canoando nas águas barrentas repletas de pseudômonas, coliformes e et caetera e tais.
Aqui, na avenida principal da cidade grande, coalhada de bancos e instituições financeiras, das inevitáveis galerias com lojas de todos os matizes e de uma ou outra lanchonete tipo “fast-food” – dessas que servem sanduiches com gosto de isopor, tanto faz filé de frango, hambúrguer ou porco na brasa, acompanhado de meio litro de gelo picado em um copo de refrigerante ou suco – as pessoas driblam os guarda-chuvas e tentam desesperadamente apanhar um táxi.
Alguns taxistas passam com o carro sem passageiros, aceleram na hora certa para lançar um pouco da água empoçada do leito carroçável para cima da calçada, atingindo as pernas dos esperançosos e desditosos clientes e se divertem com isso – mais do que diversão, é uma perversão, uma vingança contra a sociedade.
Mas a maioria dos táxis que passam já vêm lotados, a gente consegue ver a silhueta do passageiro através do vidro embaçado.
A água corre em direção aos bueiros razoavelmente desobstruídos – o prefeito desta cidade mantém um eficiente sistema de conservação e procura conservar a cidade tão limpa quanto os cofres do município, também desobstruídos – e a água que desaba sobre o chão invade o solado dos sapatos e lava as pernas nuas das saias molhadas e também as pernas vestidas de casimira ou jeans.
É o dilúvio vespertino.
Autos e ônibus trafegam com os faróis ligados, ajudando a sinalizar o caos. O guarda de trânsito se escondeu debaixo da banca de revistas e por detrás da capa escura de plástico grosso, e o apito, sempre saudável e estridente nas tardes de sol, agora se esconde rouco e mudo dentro do bolso da camisa.
A senhora cheia de pacotes, munindo uma sombrinha que mais ajuda a molhar do que a proteger da cascata incessante, acena para um táxi que se aproxima devagarinho como se o taxista estivesse apreciando o pandemônio encharcado.
A garota cheia de livros e sem guarda-chuva também acena, toda aquática, para o mesmo táxi, a blusa branca toda fina colada no corpo e fazendo o motorista esticar o pescoço e limpar o vidro dianteiro com a mão para melhor apreciar essa obra de arte que a natureza criou.
O senhor de idade e meia dentro do seu terno bege, portando uma pasta preta que faz as vezes de guarda-chuva também acena, os óculos embaçados e a gravata em desalinho.
Acenam também para o mesmo táxi o “office-boy” cheio de contas de água e esgoto e outras tantas dentro as escarcela verde com elástico, o cidadão de porte atlético vestindo jaqueta de couro e usando um bigode monumental, e o infeliz com cara de infeliz trajando uma calça branca, a esta altura toda adornada por nódoas cinzentas e amarronzadas, fruto da água que corre beirando o meio-fio.
O táxi para.
Todos partem para ele em desabalada carreira como numa corrida de cem metros rasos, a senhora deixando cair um dos pacotes, a garota deixando arrebentar um botão da blusa – fazendo a água da chuva caminhar por vales nunca dantes navegados – o senhor de idade e meia fazendo o seu derradeiro esforço, o “office-boy” se esgueirando como uma cobra e o grandalhão de bigode formidável acotovelando a tudo e a todos e esmagando o infeliz com cara e infeliz junto à coluna lateral do carro. Uma verdadeira prova olímpica.
Surpreendentemente, quem se afunda no assento do táxi é o senhor de idade e meia, fechando a porta com energia e quase esmagando o dedo do cavalheiro de jaqueta de couro que, não tão cavalheiro assim, explode num sonoro “filho da puta!!!” e dá outro coice no infeliz com cara de infeliz.
A senhora dos pacotes corre atrás daquele que caiu e está descendo pela torrente em direção ao bueiro.
A garota, indignada com o palavrão e com a perda do taxi procura com a mão cobrir a natureza exposta pelo botão perdido.
O “office-boy”, resignado como sempre, sai caminhando pela chuva afora pela avenida afora, convencido da inutilidade de gastar os trocados recebidos para pegar um táxi quando o melhor é ir a pé, deslizando como um surfista, e embolsar o dinheiro da corrida.   


SEGUE

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