A GULA
Conto publicado no livro “O Fantasma da
FM” em 1992.
(Parte 2)
A mansão está em festa.
À beira da piscina senhores
bem-humorados conversam ações da Bolsa, viagens a Nova York, cruzeiros de
férias, projetos políticos, financiamentos e outras questiúnculas do gênero.
Senhoras gastas e usadas, apesar dos
tratamentos de beleza, clínicas de rejuvenescimento e salões de estética,
expões suas celulites ao doce compasso das confidências, das inconfidências,
das fidelidades e das infidelidades e do próximo chá de caridade onde as damas
desfilarão novos modelos e farão a mostra das caras joias que moram escondidas
no cofre.
Ao sol, rapagões bronzeados, cabelos à
última moda e minúsculas sungas pondo em evidência todos os seus volumes, e as
gatésimas gatas pondo em evidência as protuberâncias superiores e inferiores se
dourando como tenros galetos. A música de fundo se insinua ruidosamente pelos
quatro cantos da casa através de alto-falantes estrategicamente instalados por
entre arbustos e postes de iluminação e provoca suspeitas a respeito do bom
gosto dos anfitriões.
À sombra dos trinta e seis graus
reinantes, uma mesa vestida com uma toalha branca rendada e imaculada dispõe
garrafas do mais puro uísque escocês – Pipe Major, Cutty Sark, Teacher’s Royal
Highland, e também de vodka Wiborowa, do gim Seager’s e do conhaque Domecq
espanhol de Espanha.
“Appetizers” e canapés variados rodeiam
o centro da outra mesa colocada próxima à primeira, cercados por triviais
castanhas e outros petiscos para “tirar gosto” como diz o vulgo ou acrescentar
o apetite como dizem os “gourmets”.
Os doutores arriscam um olhar mais
ousado para as filhas dos outros doutores sob o olhar de censura constante das
esposas de todos os doutores e o semblante entre o intrigado e o “deixa pra lá”
dos filhos e outros amigos dos doutores e dos próprios doutores.
Após a piscina e os aperitivos e após a
chegada do senador com a sua devida “entourage”, trazendo no rosto o competente
ar de um homem sério (embora não passe de um sórdido safado), é servido o
almoço à base de frutos do mar e crustáceos gerais regado ao bom vinho branco
alemão ou àquela cerveja dinamarquesa vinda diretamente do importador – trazida
à bordo do navio de bandeira irlandesa que chegou há alguns dias com o porão
repleto de artigos eletrônicos e material importado carente dos documentos
regulares. Trutas com amêndoas acompanham o prato principal que na verdade era
apenas a entrada.
Trata-se do milagre da multiplicação da
fartura.
Para as vinte e oito pessoas que
participam do animado ágape foi providenciada uma quantidade de secos e
molhados suficiente para alimentar pelo menos cem, mesmo sabendo que não
adianta preparar cinquenta pratos diferentes quando a fome humana não é capaz
de consumir mais do que cinco.
E, neste caso, os adultos enressacados e
a trivial “jeunesse dorée” colocam apenas míseras porções sobre os pratos de
porcelana chinesa porque à noite teremos um jantar para duzentos talheres na
recepção que o governador oferecerá ao ministro senegalês que nos visita. Além
do mais, temos que manter a linha e evitar aquela desagradável gordurinha que
enfeia a nossa beleza.
Lá fora, um dos meninos miseráveis,
aquele negrinho com a camiseta esburacada ostentando a propaganda política do
atual prefeito, pede ao guarda com cara de javali um pouquinho de comida.
“Hoje não tem, vai andando e não enche o saco!” –
esbraveja ele, depois resmunga “...ninguém aguenta tanto mendigo pedindo coisas
por aí!...”
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