terça-feira, 19 de dezembro de 2017




A GULA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 2) 

A mansão está em festa.
À beira da piscina senhores bem-humorados conversam ações da Bolsa, viagens a Nova York, cruzeiros de férias, projetos políticos, financiamentos e outras questiúnculas do gênero.
Senhoras gastas e usadas, apesar dos tratamentos de beleza, clínicas de rejuvenescimento e salões de estética, expões suas celulites ao doce compasso das confidências, das inconfidências, das fidelidades e das infidelidades e do próximo chá de caridade onde as damas desfilarão novos modelos e farão a mostra das caras joias que moram escondidas no cofre.
Ao sol, rapagões bronzeados, cabelos à última moda e minúsculas sungas pondo em evidência todos os seus volumes, e as gatésimas gatas pondo em evidência as protuberâncias superiores e inferiores se dourando como tenros galetos. A música de fundo se insinua ruidosamente pelos quatro cantos da casa através de alto-falantes estrategicamente instalados por entre arbustos e postes de iluminação e provoca suspeitas a respeito do bom gosto dos anfitriões.
À sombra dos trinta e seis graus reinantes, uma mesa vestida com uma toalha branca rendada e imaculada dispõe garrafas do mais puro uísque escocês – Pipe Major, Cutty Sark, Teacher’s Royal Highland, e também de vodka Wiborowa, do gim Seager’s e do conhaque Domecq espanhol de Espanha.
“Appetizers” e canapés variados rodeiam o centro da outra mesa colocada próxima à primeira, cercados por triviais castanhas e outros petiscos para “tirar gosto” como diz o vulgo ou acrescentar o apetite como dizem os “gourmets”.
Os doutores arriscam um olhar mais ousado para as filhas dos outros doutores sob o olhar de censura constante das esposas de todos os doutores e o semblante entre o intrigado e o “deixa pra lá” dos filhos e outros amigos dos doutores e dos próprios doutores.
Após a piscina e os aperitivos e após a chegada do senador com a sua devida “entourage”, trazendo no rosto o competente ar de um homem sério (embora não passe de um sórdido safado), é servido o almoço à base de frutos do mar e crustáceos gerais regado ao bom vinho branco alemão ou àquela cerveja dinamarquesa vinda diretamente do importador – trazida à bordo do navio de bandeira irlandesa que chegou há alguns dias com o porão repleto de artigos eletrônicos e material importado carente dos documentos regulares. Trutas com amêndoas acompanham o prato principal que na verdade era apenas a entrada.
Trata-se do milagre da multiplicação da fartura.
Para as vinte e oito pessoas que participam do animado ágape foi providenciada uma quantidade de secos e molhados suficiente para alimentar pelo menos cem, mesmo sabendo que não adianta preparar cinquenta pratos diferentes quando a fome humana não é capaz de consumir mais do que cinco.
E, neste caso, os adultos enressacados e a trivial “jeunesse dorée” colocam apenas míseras porções sobre os pratos de porcelana chinesa porque à noite teremos um jantar para duzentos talheres na recepção que o governador oferecerá ao ministro senegalês que nos visita. Além do mais, temos que manter a linha e evitar aquela desagradável gordurinha que enfeia a nossa beleza.
Lá fora, um dos meninos miseráveis, aquele negrinho com a camiseta esburacada ostentando a propaganda política do atual prefeito, pede ao guarda com cara de javali um pouquinho de comida.
“Hoje não tem, vai andando e não enche o saco!” – esbraveja ele, depois resmunga “...ninguém aguenta tanto mendigo pedindo coisas por aí!...”     

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