TEMPEROS À ITALIANA
(Conto publicado do livro “À Noite,
Todos os Gatos”, em 1998)
(Parte 2)
Foi então que tive a magnífica
oportunidade de conhecer Fiordermundo e a bela Calcedônia, como sublinhado nas
primeiras linhas destes temperos, um casal remanescente de algum filme de Visconti.
As apresentações foram feitas logo após
o arrasta e puxa de cadeiras -
“Fiordermundo Hyppólito Bustamante, muito prazer...”, “Henrique Pena, por parte
da mãe, Fortunato por parte do pai...), o prazer é meu...” – “...esta é minha
esposa, Calcedônia...”) – “Cai o que?... – os olhos belos porém não muito
expressivos me cumprimentam de volta com uma expressão atoleimada.
Depois foi o suave sentar-se à mesa,
civilizadamente como exigem as etiquetas, para então começar a comer
desbragadamente como dois ostrogodos falando das coisas da vida enquanto a
linda esposa com jeito de donzela medieval divagava com o olhar perdido e a
face resplandecente, o colo arfante de alvor marmóreo e o braço direito
mostrando um discreto sinal de vacina já à altura do ombro.
Durante a nossa conversa eu omiti a compra
do bilhete por considerar o assunto possivelmente prosaico demais para os
interesses do meu novo amigo, embora tivesse a vontade enorme de lhe perguntar
se na sua opinião de homem de larga experiência, um gato correndo atrás de um
padre comunista de batina preta pudesse realmente significar cachorro – para mim,
o mais apropriado seria macaco, pois é sobejamente sabida a ojeriza que os
símios, especialmente os gorilas, têm por religiosos progressistas – mas o ambiente,
o local e a cenografia Lehartiana não me pareciam apropriados para um tipo de
elucubração a respeito deste reles e popularesco meio de enriquecer, de Henrique
ser, muito embora, como dizia o filósofo Boris Yovanovich, “já que por meios racionais
não conseguimos fazer fortuna...”.
Prossegui então na minha recatada gula
enquanto Fiordermundo falava pelos cotovelos sobre a sua profissão – ele era
professor de línguas e linguística com especialização em línguas mortas, o que
me fez imaginar o porquê da expressão desalentada de Calcedônia e do seu olhar
vazio pretextando desinteresse com seu colo ainda mais arfante, agora
ligeiramente corado.
Nas horas vagas ele cultivava a
numismática como passatempo, e declarou possuir não apernas alguns dobrões de
ouro, fruto de alguma pilhagem em alto mar, como também alguns sestércios e
alguns rublos da época do Império. Eu disse a ele que preferia ouvir ópera, e
ele se encantou.
Falamos então de Turandot e de Gianni
Schicchi, de Mascagni e Loencavallo e finalmente entramos irremediavelmente no
campo da linguística.
Quando lhe falei sobre a minha profissão
de escritor ele me olhou com vivo interesse por sobre os óculos que se
equilibravam fantasticamente na ponta do nariz e eram presos, por medida de
segurança, a uma fina corrente dourada que passava por detrás do pescoço – e eu
me divertia a imaginar o nefando par de óculos deslizando de vez rampa abaixo e
indo mergulhar no molho de tomate com manjericão, mas ele tinha um talento
espantoso para manter os óculos sob controle, parecia que portava calços sobre
a base nasal ou controlava o movimento da haste por controle remoto.
Fiordermundo era o tipo ideal e pronto para
enriquecer o meu próximo romance que versaria sobre um desaparecido político
que na verdade havia sumido por conta própria aproveitando-se de uma ocasião
propícia depois de assassinar o amante da jovem esposa e colocar a culpa na repressão
policial através de bilhetes forjados, não da loteria, mas da sua própria
fantasia.
Ele mantinha a conversa em níveis de alta
intelectualidade e disse que apesar de ser professor – e aí discorreu sobre
algumas especializações feitas em Lisboa e em Cuernavaca – nunca havia tentado
a literatura, mas talvez algum dia tentasse escrever as suas memórias (quase
perguntei como ele havia iniciado o seu entrevero com Calcedônia, mas achei o
assunto mais inconveniente do que a história do gato que vira cachorro, ou
macaco, dependendo do ponto de vista, e me calei como um padre confessor).
Calcedônia Bustamante nada falava e
pouco comia, bebericava quando em vez o vinho e, desinteressada pelo assunto da
nossa conversa, se comprazia em esticar os olhos para uma mesa próxima onde se
sentava um belo espécime macho da raça humana, que tomava vinho branco e comia
vagarosamente uma torta salata al salmone.
Nenhum comentário:
Postar um comentário