domingo, 28 de janeiro de 2018





TEMPEROS À ITALIANA

(Conto publicado do livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 2)

Foi então que tive a magnífica oportunidade de conhecer Fiordermundo e a bela Calcedônia, como sublinhado nas primeiras linhas destes temperos, um casal remanescente de algum filme de Visconti.
As apresentações foram feitas logo após o arrasta e puxa de cadeiras  - “Fiordermundo Hyppólito Bustamante, muito prazer...”, “Henrique Pena, por parte da mãe, Fortunato por parte do pai...), o prazer é meu...” – “...esta é minha esposa, Calcedônia...”) – “Cai o que?... – os olhos belos porém não muito expressivos me cumprimentam de volta com uma expressão atoleimada.
Depois foi o suave sentar-se à mesa, civilizadamente como exigem as etiquetas, para então começar a comer desbragadamente como dois ostrogodos falando das coisas da vida enquanto a linda esposa com jeito de donzela medieval divagava com o olhar perdido e a face resplandecente, o colo arfante de alvor marmóreo e o braço direito mostrando um discreto sinal de vacina já à altura do ombro.
Durante a nossa conversa eu omiti a compra do bilhete por considerar o assunto possivelmente prosaico demais para os interesses do meu novo amigo, embora tivesse a vontade enorme de lhe perguntar se na sua opinião de homem de larga experiência, um gato correndo atrás de um padre comunista de batina preta pudesse realmente significar cachorro – para mim, o mais apropriado seria macaco, pois é sobejamente sabida a ojeriza que os símios, especialmente os gorilas, têm por religiosos progressistas – mas o ambiente, o local e a cenografia Lehartiana não me pareciam apropriados para um tipo de elucubração a respeito deste reles e popularesco meio de enriquecer, de Henrique ser, muito embora, como dizia o filósofo Boris Yovanovich, “já que por meios racionais não conseguimos fazer fortuna...”.
Prossegui então na minha recatada gula enquanto Fiordermundo falava pelos cotovelos sobre a sua profissão – ele era professor de línguas e linguística com especialização em línguas mortas, o que me fez imaginar o porquê da expressão desalentada de Calcedônia e do seu olhar vazio pretextando desinteresse com seu colo ainda mais arfante, agora ligeiramente corado.    
Nas horas vagas ele cultivava a numismática como passatempo, e declarou possuir não apernas alguns dobrões de ouro, fruto de alguma pilhagem em alto mar, como também alguns sestércios e alguns rublos da época do Império. Eu disse a ele que preferia ouvir ópera, e ele se encantou.
Falamos então de Turandot e de Gianni Schicchi, de Mascagni e Loencavallo e finalmente entramos irremediavelmente no campo da linguística.
Quando lhe falei sobre a minha profissão de escritor ele me olhou com vivo interesse por sobre os óculos que se equilibravam fantasticamente na ponta do nariz e eram presos, por medida de segurança, a uma fina corrente dourada que passava por detrás do pescoço – e eu me divertia a imaginar o nefando par de óculos deslizando de vez rampa abaixo e indo mergulhar no molho de tomate com manjericão, mas ele tinha um talento espantoso para manter os óculos sob controle, parecia que portava calços sobre a base nasal ou controlava o movimento da haste por controle remoto.
Fiordermundo era o tipo ideal e pronto para enriquecer o meu próximo romance que versaria sobre um desaparecido político que na verdade havia sumido por conta própria aproveitando-se de uma ocasião propícia depois de assassinar o amante da jovem esposa e colocar a culpa na repressão policial através de bilhetes forjados, não da loteria, mas da sua própria fantasia.
Ele mantinha a conversa em níveis de alta intelectualidade e disse que apesar de ser professor – e aí discorreu sobre algumas especializações feitas em Lisboa e em Cuernavaca – nunca havia tentado a literatura, mas talvez algum dia tentasse escrever as suas memórias (quase perguntei como ele havia iniciado o seu entrevero com Calcedônia, mas achei o assunto mais inconveniente do que a história do gato que vira cachorro, ou macaco, dependendo do ponto de vista, e me calei como um padre confessor).
Calcedônia Bustamante nada falava e pouco comia, bebericava quando em vez o vinho e, desinteressada pelo assunto da nossa conversa, se comprazia em esticar os olhos para uma mesa próxima onde se sentava um belo espécime macho da raça humana, que tomava vinho branco e comia vagarosamente uma torta salata al salmone.  


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