segunda-feira, 29 de janeiro de 2018





TEMPEROS À ITALIANA

(Conto publicado do livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 3)

Daqui a vinte anos, eu é que vou escrever as minhas memórias depois de juntar todas as baboseiras que determinaram o encadeamento da minha vida, vou registrar a barba e os óculos do professor – o que confere credibilidade.
Comecei a divagar e tendo a sua voz como fundo musical e a lembrar da soberba noite tropical em que eu vivi algum tempo atrás que também vou colocar no livro – aquela choperia de alta classe com mesas pelas calçadas como na Riviera Francesa, ao som de violinos e banhada à luz argêntea da lua, com o mudo de plantão distribuindo seu alfabeto de mesa em mesa para logo após tentar trocá-los por uns trocados, os garçons lépidos, os fregueses fagueiros, os copos suados e os corpos perfumados, a decoração suíça com um toque de Sûr les Alpes, e de repente a chuva inusitada de verão, surpreendente, forte e quente, fazendo pessoas e copos se levantarem numa debandada como num levante levantino, agora a choperia de fato banhada de argêntea água, todos correndo para o lado abrigado do bar – com licença, com licença – já não tão fagueiros – os garçons ainda mais lépidos recolhendo pratos e enxugando cadeiras molhadas com guardanapos.  
Estava fixamente atento à balbúrdia quando em meio à sarabanda surgiu o mudo da casa já desesperançado de correr atrás dos seus cartões, muitos dos quais já desciam a torrente que marginava a calçada como um batel em direção ao sumidouro.
Desanimado, o mudo se resignou a comer o seu sanduiche, cortesia da casa, e em sorver o seu refresco de maracujá e, sem pensar dias vezes, aboletou-se à minha mesa fazendo uma mesura desmesurada.
Seguiu-se um lento e doloroso diálogo (?!) sobre a chuva que veio estragar a beleza da noite e o seu mal rendoso negócio de cartões de surdo-mudo, nós, que entre mudos, bêbados, boêmios e escritores detestamos as surpresas das intempéries repentinas – estamos de acordo? – afinal, não sou lavoura para gostar deste pé d’água – e o mudo assentindo entre uma mordida e um gole – o que seria uma conversa surrealista se o meu mudo fosse também surdo, individualista por ser somente mudo, psicogênica se ele estivesse se negando a falar por causa de algum protesto ou notavelmente vigarista se ele fosse um pretenso mudo e estivesse se divertindo às minhas custas.
Fui despertado dos meus devaneios quando o professor emitiu um agudo um pouco mais forte enquanto gesticulava animado.
Vejo Calcedônia se levantar, pedindo uma licença muda como o meu mudo da choperia, apanhar a bolsa e se dirigir à toalete. Creio ter percebido um átimo em que o restaurante ficou em silêncio admirando aquela loucura que caminhava estudadamente como se acompanhada por um spot light.
O Rattus Norvegicus mexe o nariz inquietamente para equilibrar melhor os óculos, eu procuro me fixar melhor nos seus olhos cinzentos para acompanhar melhor a linha dos seus pensamentos, mas as íris me traem e acompanham discretamente as curvas da sua esposa com as cadeiras balançantes como num concurso de rainha do bairro.  
Percebo o olhar galante do macho da salata al salmone em direção à cândida Calcedônia, o que denotava um prelúdio de um interlúdio lúdico e lúbrico, enquanto o professor, de costas para a cena, discorria a respeito de filosofemas.   
Arrisquei-me a tecer conjeturas sobre a necessidade de publicar um best-seller e proclamar minha independência financeira, pois eu, mesmo em Henrique sendo, vou aos poucos empobrecendo e vou acabar tendo que arriscar a sorte na loteria – finalmente consegui mencionar o malfadado bilhete!
Fiordermundo fala alguma coisa sobre uma cimitarra de ouro que herdou de um velho tio, lógico que não no seu tamanho natural, mas uma mera miniatura, ao que eu sorri, não pela cimitarra, mas quando notei pelo meu faro de escritor de ficção, uma cena singular, que não era ficção: ao passar pela mesa do belo Petrônio que acabara de comer a sua torta salata al salmone, Calcedônia recebeu das suas mãos de unhas bem tratadas de cavalheiro um pequeno pedaço de papel dobrado.
Ela hesitou, entre o parar e o continuar, olhou levemente para trás e seguiu em direção à porta cujo painel mostrava o desenho de uma melindrosa estilizada.   


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