TEMPEROS À ITALIANA
(Conto publicado do livro “À Noite,
Todos os Gatos”, em 1998)
(Parte 4)
Fiordermundo me conta detalhes do
estúdio onde guarda as suas moedas e seus livros linguísticos. É uma espécie de
biblioteca toda fechada, com tapete persa, paredes revestidas com lambris de
madeira de lei, escrivaninha com lâmpadas de leitura, gravuras e obras de arte –
embora não originais – dependuradas aqui e acolá e uma imensa estante de mogno
onde se abrigam centenas de livros e em cujo parapeito repousam conhaques,
licores e vinhos.
Toda a cena rescende a Fiordermundo, mas
destoa profundamente da personalidade de Calcedônia, cujo estúdio deve ser uma
alcova alcatifada mesclando entre o rosa e o celeste onde ela guarda as suas
joias, embora nem todas verdadeiras, forrada de paredes com espelhos tipo corpo
inteiro, com um pechiché antigo adornado por um abajur com pedestal de anjo
esculpido em mármore, estatuetas de miniaturas espalhadas a esmo e uma estante
de cristal onde repousam perfumes, colônias, essências e estojos de pintura.
O garçom pergunta se aceitamos um Strega,
ao que aquiescemos agradecidos.
O restaurante permanece lotado com
pessoas entrando e pessoas saindo e um suave cheiro de especiarias e ervas
rescende pelo ar.
O nosso belo vizinho solitário agora se
delicia com um crema di noci com crema enquanto olha para o horizonte
com o olhar satisfeito de quem acabou de garantir mais uma conquista amorosa –
eu me refiro, é claro, à doce Calcedônia – e no íntimo se autocumprimenta,
exultante.
Falamos agora sobre Ghandi e a sua
enorme capacidade de catalisar a paciência, a persistência e a renúncia,
rejeitamos como intelectuais civilizados que somos a violência barata que se
espalha pelo mundo e o materialismo exacerbado que conduz o ser humano a
extremismos inconvenientes e vemos com igual alegria a aproximação de Calcedônia,
tão bela quanto tímida, tão provocante quanto donzela, tão burra quanto
esperta, a bolsa segura pela mão direita e a mão esquerda fechada guardando um
segredo, os lábios devidamente retocados, a elegância impecável e o ar de
princesa.
Ela vem toda Bustamente, chega, para e
ao invés de sentar-se permanece em pé ao lado da mesa como uma estátua de busto
arfante, para nossa estranheza e curiosidade. Pousa a bolsa delicada sobre a
toalha enxadrezada, entre o prato pouco consumido e a taça de vinho pela
metade, abre a mão esquerda e apresenta aos olhos mal-entendidos e estupefatos
de Fiordermundo o tal bilhete, agora totalmente desdobrado, no qual se lia – “298-6450,
depois da duas – Damásio”, um bom palpite para procurar o bilheteiro na saída e
comprar vinte frações do galo.
Fiordermundo ficou pálido, teve um
estremecimento e olhou atônito para a expressão provocante e infantil de
Calcedônia como se pedindo a sua autorização para tomar alguma providência.
Calcedônia sorriu e um sorriso de inocência se estampou na sua face, lembrando
mais do que nunca uma menina sapeca.
O belo Damásio da mesa ao lado dava as
suas doces colheradas admirando o fino calcanhar da sua vítima, um fetiche
gelado que, mal sabe ele, logo se transformará num acalorado pastiche em vez do
esperado sanduiche de alguma tarde vindoura depois das duas.
Eu fico pensando em o que faria Ghandi
numa situação embaraçosa como esta, pra não dizer constrangedora.
O professor olhou mais uma vez para o
bilhete querendo não acreditar no que via e no que lia, olhou para mim como que
pedindo ajuda, olhou para a esposa como se pedindo orientação, ela agora
portando uma expressão desamparada. Ele pediu licença, cortesmente, limpou o
canto da boca com o guardanapo branco com ornatos, guardou os óculos no bolso
do paletó e levantou-se vagarosa, mas altivamente.
Foi em direção ao abestalhado Damásio e
sem pestanejar ou pedir permissão desferiu-lhe um portentoso petardo na ponta
do queixo com o punho direito, o atirando com cadeira e tudo contra a mesa ao
lado, estragando o regabofe de uma gorda senhora de colar de pérolas e de um empertigado
senhor de calva pronunciada.
Gritos estremecem o restaurante,
bolinhas de pérolas voam e rolam pelo chão, o resto do crema di noce foi temperar um cabrito à caçadora perfumado à sálvia
e estragão.
Calcedônia agora se senta placidamente
ao mau lado para melhor apreciar a cena e o conquistador fica estático,
estirado no chão, com os olhos vidrados como se tivesse tido um ataque de
estupor.
Fiordermundo berrava, apoplético e
gesticulava como Otelo – “canalha!”, “patife!” – e, perdendo a compostura – “filho
da puta”!”.
A confusão foi maior do que a minha
noite chuvosa de Sûr les Alpes, um prato delicioso para o meu livro de memórias.
SEGUE
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