EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE
EM ÉPOCA DE PROVAS
(Conto publicado em 1988 no livro “Coisas
– Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em 1967)
(Parte 1)
Mais uma vez nesta mesma estação.
Não me lembro mais quantas, se duas, se
dez, se mil, mas estou sempre chegando e raras vezes partindo, é assim que me
parece, é assim que me sinto.
É que chego acordado, sofrendo o que
está havendo e o que está por vir, e parto sonhando, não raro dormindo.
Estação de águas, estação de trem,
estação do ano, mais uma vez estou aqui.
Minha chegada se cerca de irreverência,
se cerca de reverência, as marquises se inclinam para me dar as boas-vindas –
ou simplesmente para me olhar mais de perto, um objeto estranho, uma pessoa estranha,
já deviam ter se acostumado comigo.
Da minha parte, eu a conheço bem. Nem
estação de águas é mais, nem quando chove, faltam água e turistas naquele
hotel-pensão, uma estação sem outra atração além da praça inaugurada pelo
imperador no tempo do imperador, isso é o que diz a placa no monumento com a
sua muda voz de bronze.
O chiado dos trens lembra o barulho de
ferros retorcidos, mas o deste aqui parece agonia de asmático. Depois suspira,
depois suspiro, carrego a mala e vou abrindo caminho com os joelhos nos outros,
a porta é sempre estreita e os degraus perigosos, as bolinas se sucedem,
intencionais ou sem intenção, enquanto olhares agressivos e inocentes se
intercalam assim como os vazios e os dormentes da linha férrea.
O vendedor de jornais vende jornais, e
nem poderia vender outra coisa, ou poderia, se quisesse, quem sabe quer e não
pode, por isso tem essa cara de esquife, ou será que são os reflexos das más notícias
do dia?
Alguns níqueis bastariam, agora que
reinventaram os níqueis, para que o homem dos jornais sorrisse de um jeito
agradecido, seriam os níqueis para o pão, havendo o pão.
Outra bomba na Ásia, é sempre na Ásia ou
nas redondezas, talvez por ser maior o espaço e maior o número de vítimas, de
Hiroshima a Haiphong, de Seul a Quang Binh, os amarelos de olhos riscados
nascendo como cogumelos e morrendo como cogumelos, têm os olhos estreitos por
causa do clarão intermitente dos cogumelos atômicos, é matar dez e aparecem
vinte, numa progressão geométrica e geográfica, geológica, ilógica e ideológica.
O ministro falou que... – mas o que interessa o que o ministro falou, se
é só o que ele sempre faz? Falou, mas não se importa com a fome nem com a
verdade, nem com a crise. O chefe da polícia e o ministro do trabalho pedem
para que não se façam greves ou passeatas ao meio dia para não estragar a hora
do almoço, às cinco da tarde sim, que é hora de apanhar e de interromper o
trânsito. E que os jornaleiros continuem mantendo a sua cara de esquife como se
além do jornal estivessem vendendo o próprio filho, o que afinal não deixa de
ser também uma forma de protestar.
A plataforma da estação se estende por
muitos metros para finalizar numa rampa ao lado de um leito ferroviário coberto
por pedregulhos manchados por óleo. Chaves se movimentam, preguiçosas. Ainda
existe algum vestígio do vapor da velha máquina, embora os trens do império
tenham sido trocados por locomotivas americanas há um certo tempo, financiadas
pela Baltimore Ohio & Co.
O portão de ferro está aberto, apontando
suas grades para cima, e todos passam silenciosos como nas fronteiras, crianças
por debaixo das catracas e as de colo por cima, os adultos com a barriga ou com
o sexo empurrando a alavanca com um estalo, a virgindade mais uma vez rompida
naquele ruído de portão quando se fecha. É o mesmo ruído do portão do cemitério
e o mesmo visual de sessenta anos atrás, os ratos deslizando e os quadros de
aviso sem leitores e sem avisos.
Assim também fazia Hitler, tocava o seu
rebanho ao som de marchas e contramarchas, a mão estendida à guisa de
continência para ver se estava chovendo, até que choveram bombas britânicas
estreladas, e aí então, mesmo aquela cruz quebrada impressa sobre sangue perdeu
sua austeridade, mesmo os centuriões perderam os seus escudos e as suas
máscaras, as contra gases e as da arrogância, e mesmo o som da marcha perdeu o
seu repique.
SEGUE
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