sábado, 24 de fevereiro de 2018






EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE EM ÉPOCA DE PROVAS

(Conto publicado em 1988 no livro “Coisas – Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em 1967)

(Parte 3)

O amanhecer é mais amargo, com o corpo doído e suado à espera do café com leite no copo e da fatia de pão com manteiga dos dois lados.
O gerente batendo frenético nas portas dos quartos – “sete horas” “sete horas” – como se alguém estivesse perguntando, como se alguém tivesse perguntado.
As poltronas de palhinha da sala de espera ficam em frente à mesinha de centro cheia de revistas do mês passado e de jornais amassados contando os falecimentos e os nascimentos da cidade – a proporção até que é animadora – as mentiras do prefeito e as solenidades da Câmara.
Algum maluco saiu à rua em trajes menores, a mocinha foi apanhada em flagrante delito pelo pai e o namorado fugiu, vão asfaltar três ou quatro ruas e algumas praças que ficam atrapalhando no meio, há grandes preparativos para a festa de aniversário da cidade, a Festa do Imperador – “que em 1875 foi elevada à categoria de vila por...” – e estas questiúnculas polvilham, e enfadam, e enfaram, e enjoam, afinal, o que esta gente sabe do mundo, da fome e da guerra, o que é que eles sabem das crianças da Ásia e da América Latina, o que eles sabem dos preconceitos que oprimem e matam, o que é que eles sabem?
Mas não devo falar coisa alguma, pois nem as poltronas de palhinha entenderiam, ficaram assim distantes desde que nela se sentou a bunda do imperador, e também a do avô dele, também imperador e muito mais reacionário. Nem este velho telefone de gancho me entenderia, ele, que balança como o enforcado na forca, nem esta rádio vitrola com três botões e um alto-falante com olho de gente, nem o quadro de chaves. Nem o gerente.
Serei um perigo para a sociedade?
Pelo menos Economia eu curso, o que já é um indício, e lá não me empolgam contadores ou contadorias, livros-caixa, razão e outras razões, a mim me empolgam finanças, organização e planejamento e toda aquela podridão política que envolve e preenche e povoa a cabeça dos governantes.
A praça me recebe com aplausos, mas as folhas do jardim que orvalham ao regador me recebem com reservas. O imperador me sorri um sorriso de bronze, os engraxates me perseguem, as revistas se perdem na decoração rudimentar da banca, os postes estão dormindo com os olhos apagados. Existe algum vazio dentro de mim, será o desjejum, a noite má dormida, a saudade de casa ou a estação?
Há uma fonte seca bem no meio da praça, bem debaixo do imperador – um imperador que se preze não deixa a sua praça morrer de sede – mesmo os passarinhos andam fugindo por aí, com tanto sol e tanta praça.
Já estou cansado de tanto contar as ripas de madeira que formam a cerca do jardim, de tanto evitar o convite dos engraxates, de tanto aceitar os olhares inquisitivos dos outros, devo ser mesmo algo diferente, ou são as minhas ideias que extravasam ou meu tipo fora dos padrões. Já faz duas horas que caminho pelo jardim verde e ensolarado, então vou embora.
Afinal, sou estudante de Economia ou naturalista?
-0-
Aturar as desgraças alheias até que é tolerável. O duro é ter que aturar as nossas.
Há colegas de classe que não se incomodam com a vida dos outros, e por isso mesmo são apenas colegas, mas há outros que não somente se incomodam como também incomodam. Jonas, por exemplo, vive pedindo aulas de leitura mais longas, o imbecil. Eliseu vive a importunar querendo saber por que eu estudo tão pouco e sei mais do que ele, o cretino. Ariosvaldo anda sugerindo que a moça de saia curta que se senta ao meu lado venha para as aulas com roupas mais discretas, pra meu desgosto e também do professor, enquanto o ventilador de teto gira sobre as nossas cabeças e o calor continua fazendo a gente suar nas dobras.   
Ainda bem que inventaram a cerveja, que inventaram o gelo, que inventaram o bar, senão onde é que eu teria a tranquilidade para divagar tudo isso, para fechar os olhos e enxergar cada detalhe ponto por ponto – a gravata do professor, o ruído do trem, o guarda-roupa negro, o gerente mal-humorado, as pernas de Solange?

SEGUE   


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