EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE
EM ÉPOCA DE PROVAS
(Conto publicado em 1988 no livro
“Coisas – Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em
1967)
(Parte 3)
O amanhecer é mais amargo, com o corpo
doído e suado à espera do café com leite no copo e da fatia de pão com manteiga
dos dois lados.
O gerente batendo frenético nas portas
dos quartos – “sete horas” “sete horas” – como se alguém estivesse perguntando,
como se alguém tivesse perguntado.
As poltronas de palhinha da sala de
espera ficam em frente à mesinha de centro cheia de revistas do mês passado e
de jornais amassados contando os falecimentos e os nascimentos da cidade – a
proporção até que é animadora – as mentiras do prefeito e as solenidades da
Câmara.
Algum maluco saiu à rua em trajes menores,
a mocinha foi apanhada em flagrante delito pelo pai e o namorado fugiu, vão
asfaltar três ou quatro ruas e algumas praças que ficam atrapalhando no meio,
há grandes preparativos para a festa de aniversário da cidade, a Festa do
Imperador – “que em 1875 foi elevada à categoria de vila por...” – e estas
questiúnculas polvilham, e enfadam, e enfaram, e enjoam, afinal, o que esta
gente sabe do mundo, da fome e da guerra, o que é que eles sabem das crianças
da Ásia e da América Latina, o que eles sabem dos preconceitos que oprimem e
matam, o que é que eles sabem?
Mas não devo falar coisa alguma, pois
nem as poltronas de palhinha entenderiam, ficaram assim distantes desde que
nela se sentou a bunda do imperador, e também a do avô dele, também imperador e
muito mais reacionário. Nem este velho telefone de gancho me entenderia, ele,
que balança como o enforcado na forca, nem esta rádio vitrola com três botões e
um alto-falante com olho de gente, nem o quadro de chaves. Nem o gerente.
Serei um perigo para a sociedade?
Pelo menos Economia eu curso, o que já é
um indício, e lá não me empolgam contadores ou contadorias, livros-caixa, razão
e outras razões, a mim me empolgam finanças, organização e planejamento e toda
aquela podridão política que envolve e preenche e povoa a cabeça dos
governantes.
A praça me recebe com aplausos, mas as
folhas do jardim que orvalham ao regador me recebem com reservas. O imperador
me sorri um sorriso de bronze, os engraxates me perseguem, as revistas se
perdem na decoração rudimentar da banca, os postes estão dormindo com os olhos
apagados. Existe algum vazio dentro de mim, será o desjejum, a noite má
dormida, a saudade de casa ou a estação?
Há uma fonte seca bem no meio da praça,
bem debaixo do imperador – um imperador que se preze não deixa a sua praça
morrer de sede – mesmo os passarinhos andam fugindo por aí, com tanto sol e
tanta praça.
Já estou cansado de tanto contar as
ripas de madeira que formam a cerca do jardim, de tanto evitar o convite dos
engraxates, de tanto aceitar os olhares inquisitivos dos outros, devo ser mesmo
algo diferente, ou são as minhas ideias que extravasam ou meu tipo fora dos
padrões. Já faz duas horas que caminho pelo jardim verde e ensolarado, então
vou embora.
Afinal, sou estudante de Economia ou
naturalista?
-0-
Aturar as desgraças alheias até que é
tolerável. O duro é ter que aturar as nossas.
Há colegas de classe que não se
incomodam com a vida dos outros, e por isso mesmo são apenas colegas, mas há
outros que não somente se incomodam como também incomodam. Jonas, por exemplo,
vive pedindo aulas de leitura mais longas, o imbecil. Eliseu vive a importunar
querendo saber por que eu estudo tão pouco e sei mais do que ele, o cretino.
Ariosvaldo anda sugerindo que a moça de saia curta que se senta ao meu lado
venha para as aulas com roupas mais discretas, pra meu desgosto e também do
professor, enquanto o ventilador de teto gira sobre as nossas cabeças e o calor
continua fazendo a gente suar nas dobras.
Ainda bem que inventaram a cerveja, que
inventaram o gelo, que inventaram o bar, senão onde é que eu teria a
tranquilidade para divagar tudo isso, para fechar os olhos e enxergar cada
detalhe ponto por ponto – a gravata do professor, o ruído do trem, o
guarda-roupa negro, o gerente mal-humorado, as pernas de Solange?
SEGUE
Nenhum comentário:
Postar um comentário