sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018






EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE EM ÉPOCA DE PROVAS

(Conto publicado em 1988 no livro “Coisas – Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em 1967)

(Parte 2)

Assim foi sempre, e assim sempre será – como na ascensão e queda do terceiro reino.
O campo de concentração exultava naquela época, moirões e câmaras de tortura vibravam e não era só por causa de tiros e dores, pois os ainda vivos riam sem dentes, arrancados um a um pelo alicate de Mengele, que se dizia cirurgião, e os já mortos riam também, pois não têm lábios para esconder a falta de dentes, não têm músculos para contrair as faces e não têm faces, arrancadas pela perícia de Borman e seus alicates de sapateiro. A própria cerca de arame farpado se fletia para dar passagem ao ar puro a fim de eliminar aquele cheiro de carne queimada e o fedor da danação vinda de Berlim.
Antes, todo mundo se escondia e escondia os olhos, pensando que aquilo não iria acabar nunca. Parecia que não ia acabar, mas acabou.
Assim fazemos nós, nos encolhendo para evitar o golpe mais certo, as bombas explodindo lá atrás e milhares de gendarmes armados esperando o mínimo gesto ou o mínimo olhar para desabar o braço de borracha sobre as nossas ideias.
Assim fez um covarde, e não deixou de morrer da mesma forma.
Mesmo nesta estação caminhamos silenciosos pelo portão, só falta nos revistar e encostar a arma na nossa nuca. Portando fardas mais humildes, sem portar nenhum tipo de arma, vêm os homens que empacotam nossas malas, que emalam nossos pacotes sobre carrinhos de fundo rasteiro, como num supermercado.
O bar da estação está às moscas, não que falte gente, mas é que sobram moscas, apesar dos pratos indesejáveis e engordurados, ou exatamente por causa deles.
Vou para o lado de fora da estação e para o lado oposto da rua, enquanto o resto do pessoal se dispersa como numa saída de fábrica.
Uma locomotiva silva.
-0-
Afinal, o que é que eu vim fazer aqui, afinal, o que estou fazendo aqui?   
Com tantas escolas na minha cidade venho encontrar o tédio nesta sala de aula – as outras também são cansativas, mas ficam a dez minutos da minha casa e não a meio dia de viagem, isto sem contar a cara do hoteleiro, a dureza da cama e o banheiro sem água.
Tudo por um diploma, para depois me aburguesar como chefe e passar o resto da vida assinando não sem antes se dar ares de importância e sequer olhar o documento que às vezes nem documento é, pigarreando alto e olhando por cima dos óculos, deviam andar com o diploma grudado na testa e o número do registro gravado a ferro, já que parece que o anel de formatura não basta.
Tudo e tanto só por um diploma, já que não me permitem utilizar meus conhecimentos para criar algum projeto, pois tudo o que não for feito por eles é ruim para eles – isto é mais do que lógico – o jeito é se apegar a teóricos antigos, reestruturar as suas ideias, afastadas um século da realidade, e sonhar com dias melhores.
E isso eu não faço, prefiro rasgar as minhas credenciais e atirar os pedacinhos no vaso sanitário.
A garota que se senta ao meu lado nesta aula de História do Pensamento Econômico não quer mesmo que eu assista à aula com a saia do jeito que está, com as pernas do jeito que estão. Não é à toa que o professor estica seus olhos e seus óculos para o chão, como se estivesse procurando o assunto, mas o assunto ele sabe de trás pra frente, ele está é procurando a cor do fundo, como eu também estou, mas na minha posição não dá. Era só girar uns poucos graus à esquerda e diminuir a cota do referencial, mas neste caso não seria aula de Economia e sim de Topografia.
Por diversas vezes já idealizei salas de aula com o chão e as paredes espelhados, mas isso quando não houver freiras, bem entendido.
“Como se trata de um problema complicado, cujas consequências são transcendentais, é de rigor uma grande prudência...” – isso dizia um tal de Nevett, que podia entender muito de crescimento da população, mas não entendia de freiras, de salas espelhadas nem da forma como EU encaro o crescimento da população.
Depois da aula, o banho mal tomado e a noite mal dormida.
Não sei se são os fantasmas que habitam esta velha construção, se foi o sanduiche de pernil ou simplesmente o calor com seus cantores – os pernilongos – que me faz virar e revirar de um lado para o outro como um mártir na fogueira.
  Não foi o sanduíche, na certa, foram as doses, essas é que complicam a noite do mal viajado, mal acomodado, mal banho tomado, mal assistido em aulas e do mal visto em pernas e em cores. O professor bailava na minha cabeça a noite toda, a gente nem dorme nem acorda, o corpo coça e a sensação é estranha, uma hora, uma e meia, duas horas, duas e meia, onde estou?, onde estou?, onde estou?

SEGUE


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