EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE
EM ÉPOCA DE PROVAS
(Conto publicado em 1988 no livro
“Coisas – Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em
1967)
(Parte 2)
Assim foi sempre, e assim sempre será –
como na ascensão e queda do terceiro reino.
O campo de concentração exultava naquela
época, moirões e câmaras de tortura vibravam e não era só por causa de tiros e
dores, pois os ainda vivos riam sem dentes, arrancados um a um pelo alicate de
Mengele, que se dizia cirurgião, e os já mortos riam também, pois não têm
lábios para esconder a falta de dentes, não têm músculos para contrair as faces
e não têm faces, arrancadas pela perícia de Borman e seus alicates de sapateiro.
A própria cerca de arame farpado se fletia para dar passagem ao ar puro a fim
de eliminar aquele cheiro de carne queimada e o fedor da danação vinda de
Berlim.
Antes, todo mundo se escondia e escondia
os olhos, pensando que aquilo não iria acabar nunca. Parecia que não ia acabar,
mas acabou.
Assim fazemos nós, nos encolhendo para
evitar o golpe mais certo, as bombas explodindo lá atrás e milhares de
gendarmes armados esperando o mínimo gesto ou o mínimo olhar para desabar o
braço de borracha sobre as nossas ideias.
Assim fez um covarde, e não deixou de
morrer da mesma forma.
Mesmo nesta estação caminhamos
silenciosos pelo portão, só falta nos revistar e encostar a arma na nossa nuca.
Portando fardas mais humildes, sem portar nenhum tipo de arma, vêm os homens
que empacotam nossas malas, que emalam nossos pacotes sobre carrinhos de fundo
rasteiro, como num supermercado.
O bar da estação está às moscas, não que
falte gente, mas é que sobram moscas, apesar dos pratos indesejáveis e
engordurados, ou exatamente por causa deles.
Vou para o lado de fora da estação e
para o lado oposto da rua, enquanto o resto do pessoal se dispersa como numa
saída de fábrica.
Uma locomotiva silva.
-0-
Afinal, o que é que eu vim fazer aqui,
afinal, o que estou fazendo aqui?
Com tantas escolas na minha cidade venho
encontrar o tédio nesta sala de aula – as outras também são cansativas, mas
ficam a dez minutos da minha casa e não a meio dia de viagem, isto sem contar a
cara do hoteleiro, a dureza da cama e o banheiro sem água.
Tudo por um diploma, para depois me
aburguesar como chefe e passar o resto da vida assinando não sem antes se dar
ares de importância e sequer olhar o documento que às vezes nem documento é,
pigarreando alto e olhando por cima dos óculos, deviam andar com o diploma
grudado na testa e o número do registro gravado a ferro, já que parece que o
anel de formatura não basta.
Tudo e tanto só por um diploma, já que não
me permitem utilizar meus conhecimentos para criar algum projeto, pois tudo o
que não for feito por eles é ruim para eles – isto é mais do que lógico – o
jeito é se apegar a teóricos antigos, reestruturar as suas ideias, afastadas um
século da realidade, e sonhar com dias melhores.
E isso eu não faço, prefiro rasgar as
minhas credenciais e atirar os pedacinhos no vaso sanitário.
A garota que se senta ao meu lado nesta
aula de História do Pensamento Econômico não quer mesmo que eu assista à aula
com a saia do jeito que está, com as pernas do jeito que estão. Não é à toa que
o professor estica seus olhos e seus óculos para o chão, como se estivesse
procurando o assunto, mas o assunto ele sabe de trás pra frente, ele está é
procurando a cor do fundo, como eu também estou, mas na minha posição não dá.
Era só girar uns poucos graus à esquerda e diminuir a cota do referencial, mas
neste caso não seria aula de Economia e sim de Topografia.
Por diversas vezes já idealizei salas de
aula com o chão e as paredes espelhados, mas isso quando não houver freiras,
bem entendido.
“Como se trata de um problema
complicado, cujas consequências são transcendentais, é de rigor uma grande
prudência...” – isso dizia um tal de Nevett, que podia entender muito de
crescimento da população, mas não entendia de freiras, de salas espelhadas nem
da forma como EU encaro o crescimento da população.
Depois da aula, o banho mal tomado e a
noite mal dormida.
Não sei se são os fantasmas que habitam esta
velha construção, se foi o sanduiche de pernil ou simplesmente o calor com seus
cantores – os pernilongos – que me faz virar e revirar de um lado para o outro
como um mártir na fogueira.
Não foi o sanduíche, na certa, foram as doses,
essas é que complicam a noite do mal viajado, mal acomodado, mal banho tomado,
mal assistido em aulas e do mal visto em pernas e em cores. O professor bailava
na minha cabeça a noite toda, a gente nem dorme nem acorda, o corpo coça e a
sensação é estranha, uma hora, uma e meia, duas horas, duas e meia, onde
estou?, onde estou?, onde estou?
SEGUE
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