CRISOLDA VAI CASAR
(Excerto)
Crisolda vai casar.
Por encanto ou desencanto, Crisolda vai
casar depois dos quarenta anos, curada da febre dos quarenta graus, subindo a
escada dos quarenta degraus, com Nicolau, o maldito do bairro.
Bela como uma prima-dona de Rossini
maquiada como artista mambembe e inconvincente como desculpas de maridos ao
alvorecer, Crisolda veste um branco vestal de um ridículo surrealista como se o
costureiro tivesse sido Fellini.
O pai de Crisolda, debaixo dos sete
palmos há sete anos, está finalmente aliviado pelo esperado momento e ansia em
ouvir a marcha nupcial de Mendelsohn ecoando pela nave da igreja enquanto
suspira, exalando um fogo-fátuo que mais se assemelha a fogos de artifício
chineses em noite de réveillon.
A mãe de Crisolda, debaixo dos cobertores
pretextando uma imobilidade reumática, fruto psicossomático das suas
desesperanças, suspira aborrecida e aguarda a volta do casal para abençoá-los
ou amaldiçoá-los ao pé da cama.
Aquela linda garotinha de cabelos
cacheados e vestido de lacinhos, a boneca do bairro, se transformara
rapidamente na doce e meiga Crisolda, sonho e desejo dos adolescentes da
vizinhança, e depois na bela Crisolda amadurecida como fruta de estio, passando
pela casa dos vinte com a arrogância de quem quer permanecer solteira por não
encontrar ninguém à sua altura. Chegara aos trinta ainda luminescente com as
bênçãos de Balzac, mas a partir daí começou a entrar em franca decadência como
flor amanhecida e agora é um retrato amassado
e amarelado pelo tempo, o tornozelo ainda fino evocando sensualidade,
mas as ancas sacudindo proeminentes e gelatinosas como trouxa de lavadeira.
Este quadro desanimador – comentavam –
teria forçado Crisolda a aceitar, como derradeiro alento, dizer “sim” ainda que
fosse para o maldito do bairro.
Crisolda vai casar.
Ela teve muitos pretendentes, mas de
recusa em recusa, de negativa em negativa, de oportunidade havida em
oportunidade perdida, a areia do tempo foi se escoando pelo fino conta-gotas da
ampulheta e Crisolda foi se transformando de princesa em borralheira, de rosa
orvalhada em flor de resto de festa, de borboleta em crisálida, de seda em pano
de chão.
E agora, Crisolda vai casar com Nicolau,
o maldito do bairro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário