sábado, 17 de novembro de 2018






CRISOLDA VAI CASAR
(Excerto)

Crisolda vai casar.
Por encanto ou desencanto, Crisolda vai casar depois dos quarenta anos, curada da febre dos quarenta graus, subindo a escada dos quarenta degraus, com Nicolau, o maldito do bairro.
Bela como uma prima-dona de Rossini maquiada como artista mambembe e inconvincente como desculpas de maridos ao alvorecer, Crisolda veste um branco vestal de um ridículo surrealista como se o costureiro tivesse sido Fellini.
O pai de Crisolda, debaixo dos sete palmos há sete anos, está finalmente aliviado pelo esperado momento e ansia em ouvir a marcha nupcial de Mendelsohn ecoando pela nave da igreja enquanto suspira, exalando um fogo-fátuo que mais se assemelha a fogos de artifício chineses em noite de réveillon.
A mãe de Crisolda, debaixo dos cobertores pretextando uma imobilidade reumática, fruto psicossomático das suas desesperanças, suspira aborrecida e aguarda a volta do casal para abençoá-los ou amaldiçoá-los ao pé da cama.
Aquela linda garotinha de cabelos cacheados e vestido de lacinhos, a boneca do bairro, se transformara rapidamente na doce e meiga Crisolda, sonho e desejo dos adolescentes da vizinhança, e depois na bela Crisolda amadurecida como fruta de estio, passando pela casa dos vinte com a arrogância de quem quer permanecer solteira por não encontrar ninguém à sua altura. Chegara aos trinta ainda luminescente com as bênçãos de Balzac, mas a partir daí começou a entrar em franca decadência como flor amanhecida e agora é um retrato amassado  e amarelado pelo tempo, o tornozelo ainda fino evocando sensualidade, mas as ancas sacudindo proeminentes e gelatinosas como trouxa de lavadeira.
Este quadro desanimador – comentavam – teria forçado Crisolda a aceitar, como derradeiro alento, dizer “sim” ainda que fosse para o maldito do bairro.
Crisolda vai casar. 
Ela teve muitos pretendentes, mas de recusa em recusa, de negativa em negativa, de oportunidade havida em oportunidade perdida, a areia do tempo foi se escoando pelo fino conta-gotas da ampulheta e Crisolda foi se transformando de princesa em borralheira, de rosa orvalhada em flor de resto de festa, de borboleta em crisálida, de seda em pano de chão.
E agora, Crisolda vai casar com Nicolau,  o maldito do bairro.    

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