O ANJO TORTO
(Excerto)
“Afinal, caro Pedrosa, como você define
alegoria?”
A pergunta foi feita por Hipólito
Boaventura antes de tentar o corajoso primeiro gole do café terrivelmente
quente que lhe fora servido pela atenciosa garçonete a propósito de um trabalho
supostamente literário produzido pelo sócio e amigo.
A dupla costumava espairecer todos os
dias lá pelas quatro da tarde durante uns vinte minutos que se concediam de
folga para misturar conversa fiada com um café “espresso” tomado è moda antiga sentados
a uma mesa redonda na calçada do Café Toledo, localizado na área mais
movimentada do centro comercial, a um quarteirão da Pedrosa & Boaventura
Advogados Associados.
Era no Café Toledo, que à noite virava
choperia, que os dois causídicos, plantados como qualquer comensal comum, num
hábito que se repetia já por anos a fio, buscavam esquecer por alguns momentos
os ossos do ofício e esgrimir seus conhecimentos não jurídicos.
Eis então a razão da repentina pergunta,
um tanto quanto insólita para o despropósito as hora e para a correria de uma
segunda-feira ensolarada.
“Afinal, caro Pedrosa, como você define
alegoria?”
Prudente Pedrosa empertigou-se na
cadeira, aprumou-se por trás dos óculos sem aro, e respondeu afetadamente
enquanto aguardava o líquido estimulante esfriar um pouco, usando uma
verborragia didática e acadêmica que mais se assemelhava a uma simples leitura
de um dicionário.
“Alegoria é uma exposição de ideias
através de uma narrativa onde se utilizam figuras de metáfora para dizer alguma
coisa de forma indireta”.
“Bonito!” – retrucou Boaventura – “Mais
bonito do que uma petição! Provavelmente também mais difícil de fazer!”
Pedrosa remexeu levemente as gordas
ancas na cadeira, gesto que comumente fazia quando sabia ter um trunfo
escondido na manga para decidir a seu favor uma questão delicada.
“Depende do ponto de vista” – declarou
judiciosamente. “Nós, escritores” (e deu ênfase a um atributo que ele
acreditava ter e sabia que Boaventura não tinha) “possuímos o dom de utilizar
alegorias para contar histórias” – seguiu ele com desmesurado orgulho – “assim
indiretamente o leitor vai tomando ciência de uma situação dentro de um
contexto simulado” – concluiu ele, complicando ainda mais a explicação.
“Eu escrevi uma alegoria que trata do
velho amor incompreendido, transformando uma intriga amorosa numa narrativa
surrealista. Vou trazê-la amanhã para
que você possa ler”.
O gordo Pedrosa finalmente bebeu o seu
café “espresso” quase de um gole só, no que foi imitado pelo magro Boaventura.
Deram uns trocados para a garçonete sorridente e saíram do Café lado a lado,
tal qual Laurel e Hardy, retornando para o escritório onde se defrontariam
novamente com códigos, pareceres, preceitos, súmulas e outras questiúnculas que
fazem parte do serviço.
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“De repente, ele desceu do céu, rápido e
assustador como uma ave de rapina, deixando no ar um rastro de maus fluidos e
um cheiro insuspeito de enxofre.
Chegou sem que ninguém visse, como uma
gota de chuva, como um grão de meteorito, sem se fazer notar, pois veio em
forma de sombra, impalpável como um espírito e cheio, embora sem contornos.
Ele chegou, perverso e poderoso,
traduzindo num esgar apavorante a sua intenção maldita.
Ele é assim, impiedoso e cruel, e quem já
teve a má fortuna de com ele se cruzar só conseguiu depois se lamentar do seu
infausto destino.
De nada valem os crucifixos elevados ao
alto, os exorcismos gritados a plena voz ou as preces silenciosas. Para combatê-lo
só mesmo uma reforçada legião de
arcanjos”.
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