sábado, 8 de dezembro de 2018






O ANJO TORTO
(Excerto)

“Afinal, caro Pedrosa, como você define alegoria?”
A pergunta foi feita por Hipólito Boaventura antes de tentar o corajoso primeiro gole do café terrivelmente quente que lhe fora servido pela atenciosa garçonete a propósito de um trabalho supostamente literário produzido pelo sócio e amigo.
A dupla costumava espairecer todos os dias lá pelas quatro da tarde durante uns vinte minutos que se concediam de folga para misturar conversa fiada com um café “espresso” tomado è moda antiga sentados a uma mesa redonda na calçada do Café Toledo, localizado na área mais movimentada do centro comercial, a um quarteirão da Pedrosa & Boaventura Advogados Associados.
Era no Café Toledo, que à noite virava choperia, que os dois causídicos, plantados como qualquer comensal comum, num hábito que se repetia já por anos a fio, buscavam esquecer por alguns momentos os ossos do ofício e esgrimir seus conhecimentos não jurídicos.
Eis então a razão da repentina pergunta, um tanto quanto insólita para o despropósito as hora e para a correria de uma segunda-feira ensolarada.
“Afinal, caro Pedrosa, como você define alegoria?”
Prudente Pedrosa empertigou-se na cadeira, aprumou-se por trás dos óculos sem aro, e respondeu afetadamente enquanto aguardava o líquido estimulante esfriar um pouco, usando uma verborragia didática e acadêmica que mais se assemelhava a uma simples leitura de um dicionário.
“Alegoria é uma exposição de ideias através de uma narrativa onde se utilizam figuras de metáfora para dizer alguma coisa de forma indireta”.
“Bonito!” – retrucou Boaventura – “Mais bonito do que uma petição! Provavelmente também mais difícil de fazer!”
Pedrosa remexeu levemente as gordas ancas na cadeira, gesto que comumente fazia quando sabia ter um trunfo escondido na manga para decidir a seu favor uma questão delicada.
“Depende do ponto de vista” – declarou judiciosamente. “Nós, escritores” (e deu ênfase a um atributo que ele acreditava ter e sabia que Boaventura não tinha) “possuímos o dom de utilizar alegorias para contar histórias” – seguiu ele com desmesurado orgulho – “assim indiretamente o leitor vai tomando ciência de uma situação dentro de um contexto simulado” – concluiu ele, complicando ainda mais a explicação.
“Eu escrevi uma alegoria que trata do velho amor incompreendido, transformando uma intriga amorosa numa narrativa surrealista. Vou trazê-la amanhã  para que você possa ler”.
O gordo Pedrosa finalmente bebeu o seu café “espresso” quase de um gole só, no que foi imitado pelo magro Boaventura. Deram uns trocados para a garçonete sorridente e saíram do Café lado a lado, tal qual Laurel e Hardy, retornando para o escritório onde se defrontariam novamente com códigos, pareceres, preceitos, súmulas e outras questiúnculas que fazem parte do serviço.
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“De repente, ele desceu do céu, rápido e assustador como uma ave de rapina, deixando no ar um rastro de maus fluidos e um cheiro insuspeito de enxofre.
Chegou sem que ninguém visse, como uma gota de chuva, como um grão de meteorito, sem se fazer notar, pois veio em forma de sombra, impalpável como um espírito e cheio, embora sem contornos.
Ele chegou, perverso e poderoso, traduzindo num esgar apavorante a sua intenção maldita.
Ele é assim, impiedoso e cruel, e quem já teve a má fortuna de com ele se cruzar só conseguiu depois se lamentar do seu infausto destino.
De nada valem os crucifixos elevados ao alto, os exorcismos gritados a plena voz ou as preces silenciosas. Para combatê-lo só mesmo uma  reforçada legião de arcanjos”.   

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