domingo, 19 de maio de 2019





A CHUVA E O TEMPO
(Excerto)

Seguro minha taça de vinho e encosto o nariz no vidro da janela.
Lá fora a chuva cai, grossa e incessante, e o tempo é feio e frio. As gotas se transmudam em filetes, escorregando sobre os objetos na rua e nas vidraças dos ônibus, onde formam arabescos confusos. Dentro dos ônibus, gente suando como vacas parindo.
A proximidade do meu bafo embaça a taça e embaça a vidraça. Com a ponta do dedo risco no vidro uma linha sinuosa que liga nada com nada.
A água desce ordenadamente pelo meio-fio sem provocar a pororoca dos bueiros. Os carros passam e borrifam cortinas cristalinas nas pernas dos poucos passantes.
Parece que vejo um Gene Kelly saracoteando no poste, agora que o temporal se torna mais intenso. Um novo gole do meu Shiraz aquece minhas entranhas e ameniza o frio temperado do vidro temperado.
O nariz segue encostado na vidraça e eu contemplo a chuva e me congratulo com ela, que me obrigou a ficar em casa, evitando assim aquele compromisso desagradável e inoportuno com o marido da síndica.
Pela janela, vejo figuras se movendo na paisagem cinzenta como uma animação de garatujas traçadas por uma mente febril. Surge o velho de andar alquebrado no seu traçado quebrado, e a seu lado um menino que se diverte em saltar sobre as poças. Lá vem um casal rindo feliz como se fosse uma fimbria de sol a se intrometer na sombria tormenta.
O riso do casal contagia o cenário. O menino ri, o velho também ri e até eu, que me sentia cabuloso com a má aparência do dia, rio um rio de alegria.
Ergo a taça e faço um brinde para mim mesmo.
Amanhã, cessando o mau tempo, vou voltar ao mesmo jardim e ao mesmo lago para procurar pela mesma deusa que me enfeitiçou, pelas mesmas sensações, pela mesma angústia. Vou questionar seus segredos, vou invadi-la sem medo, vou gargalhar para Pan.
Vou tomá-la pelas mãos, e então – quem sabe? – devassar todos os seus segredos.
Tomo o supremo gole e respiro contra o vidro embaçado onde as figuras se deformam como os fantasmas que povoam a minha mente e agora também a minha retina, numa dança de movimentos macabros.    

Nenhum comentário: