A CHUVA E O TEMPO
(Excerto)
Seguro minha taça de vinho
e encosto o nariz no vidro da janela.
Lá fora a chuva cai, grossa
e incessante, e o tempo é feio e frio. As gotas se transmudam em filetes,
escorregando sobre os objetos na rua e nas vidraças dos ônibus, onde formam
arabescos confusos. Dentro dos ônibus, gente suando como vacas parindo.
A proximidade do meu bafo
embaça a taça e embaça a vidraça. Com a ponta do dedo risco no vidro uma linha
sinuosa que liga nada com nada.
A água desce ordenadamente pelo
meio-fio sem provocar a pororoca dos bueiros. Os carros passam e borrifam cortinas
cristalinas nas pernas dos poucos passantes.
Parece que vejo um Gene
Kelly saracoteando no poste, agora que o temporal se torna mais intenso. Um novo
gole do meu Shiraz aquece minhas entranhas e ameniza o frio temperado do vidro
temperado.
O nariz segue encostado na
vidraça e eu contemplo a chuva e me congratulo com ela, que me obrigou a ficar
em casa, evitando assim aquele compromisso desagradável e inoportuno com o marido
da síndica.
Pela janela, vejo figuras
se movendo na paisagem cinzenta como uma animação de garatujas traçadas por uma
mente febril. Surge o velho de andar alquebrado no seu traçado quebrado, e a
seu lado um menino que se diverte em saltar sobre as poças. Lá vem um casal rindo
feliz como se fosse uma fimbria de sol a se intrometer na sombria tormenta.
O riso do casal contagia o
cenário. O menino ri, o velho também ri e até eu, que me sentia cabuloso com a
má aparência do dia, rio um rio de alegria.
Ergo a taça e faço um
brinde para mim mesmo.
Amanhã, cessando o mau
tempo, vou voltar ao mesmo jardim e ao mesmo lago para procurar pela mesma
deusa que me enfeitiçou, pelas mesmas sensações, pela mesma angústia. Vou
questionar seus segredos, vou invadi-la sem medo, vou gargalhar para Pan.
Vou tomá-la pelas mãos, e
então – quem sabe? – devassar todos os seus segredos.
Tomo o supremo gole e respiro
contra o vidro embaçado onde as figuras se deformam como os fantasmas que
povoam a minha mente e agora também a minha retina, numa dança de movimentos
macabros.
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