quinta-feira, 23 de maio de 2019






FLORES E VELAS
(Excerto)

Gente falando baixo, tom cerimonioso (para completar o ambiente, só faltam os acordes pesados de um órgão e mãos estendidas para um altar imaginário).
Pessoas se entreolham com os rostos lívidos e embaciados, os gestos são lentos e pausados (a luz é amarela e mortiça e um cheiro forte de flores e velas se impõe no ar).
No centro do cenário, mesmo em seu vestido branco de morta, a sereia da floresta esboça um sorriso de ironia e angústia, num ricto que enlouquece o seu rosto de pedra e o meu rosto de pedra (os olhos vertendo como fonte).
Flores e velas.
E a morta sorrindo a vida perdida no lago, o último passeio de barco, olhando para o céu, as mãos em forma de prece que ela jamais rezou e a aragem bafejando o seu rosto, o nosso rosto.
E, de repente, o movimento brusco e a tragédia.
Parece que um enorme leviatã vai surgir da águas, pois o lago se transforma em um oceano e o barco salta sobre as ondas, o sol se esconde, os ventos uivam e as gotas de água cintilam como pedras preciosas. Tudo acontece rapidamente, logo somos tragados pelo movimento contínuo da sinfonia das águas, e somos separados bruscamente, as mãos não mais entrelaçadas.
Flores e velas.
Não foi possível fazer nada, o barco soçobrou e o lago tragou as nossas mocidades. Eu ressuscitei.
Não foi possível fazer nada, você me olha como se entendesse, mas você não entende.
Não foi possível fazer nada, vocês me olham com olhares duros como se eu fosse culpado.
Não foi possível fazer nada, e esta vela vai queimando o meu espírito, deixando no ar uma fumaça mal cheirosa.
A tampa do ataúde se fecha como meus olhos naquela primeira tarde no parque. Mãos profanas seguram as alças, e o ataúde dança uma dança macabra a cada passo dos carregadores, começando enfim aquela procissão sem volta.
Não foi possível fazer nada, e o caixão dança sinistramente a caminho do seu endereço final.
Terra vermelha caindo em flocos como uma neve de sangue cobrindo o pálido invólucro, o misterioso sarcófago.
Cada golpe de pá soa forte em meus ouvidos.
Nada... nada... nada...
Nada. Agora só grades, ciprestes e túmulos.



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