segunda-feira, 24 de junho de 2019


A poesia “Licor de maçã”, publicada no dia 23 de junho, foi baseada num conto chamado “Contranexo” que narra a história de um sujeito que se apaixona por uma mulher que apareceu morta na praia, cujo retrato fora publicado numa página de jornal. Ele se embriaga num bar bebendo licor de maçã, e ao voltar para casa tem alucinações. Aqui, um trecho do conto.
Augusto Pellegrini




CONTRANEXO
(Excerto)

À noite todos os gatos são pardos, menos aquele ali, branco como a palidez de Rebeca, todo enroscado sobre o assento da cadeira de palha trançada, ele que me fita e me analisa e me inquire e me acompanha com o olhar de filósofo que só os gatos sabem ter, os olhos verde-cinza enigmáticos diferentes dos olhos negros pragmáticos de Rebeca, captando meu pensamento ou pelo menos fingindo que me entende, o que seria no mínimo estranho, pois nem eu mesmo me entendo.
Do lado de fora desta bodega de aspecto rústico que lembra uma velha estalagem balança uma placa de madeira esculpida a mão e presa por duas correntes e uma haste de metal, rangendo como uma ponte levadiça, com os dizeres “Restaurante do Dante – Comida Caseira”, um nome bem a calhar pelas perspectivas da noite e para o meu momento histórico – “lasciate ogni speranza voi ch’entrate”.
Enquanto trespasso o limiar da porta sem maiores rebuços, na sua soleira de mármore gasta pelos pés do tempo, o gato me acompanha com o olhar, o pescoço girando quinze graus de preguiça e uma orelha – vejam só, apenas uma orelha, a direita – se ergue como se sintonizasse  ao longe o resquício de um ruído de algum passo abafado ou como se ouvisse o barulho infernal fabricado pela minha mente, um silvo profundamente agudo que flete e reflete dentro da minha caixa craniana como uma bola de bilhar no rebordo da mesa, como um eco numa caverna, como um grito de náufrago. 
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Talvez o vulto fosse mesmo Rebeca, com sua cara de desvario, com seu sorriso obsceno, com seus braços de serpente, com sua língua de mel, talvez fosse a expressão do seu rosto de morta, meio enforcada e meio afogada.
Dante me acompanha até a soleira de mármore para ter certeza de que vou mesmo embora, dou um derradeiro adeus para o gato e já não vejo o fantasma de Rebeca a seu lado.
O gato se espreguiça como um ponto de interrogação quando o ruído da porta de enrolar atravessa a noite como uma facada. Ele me olha com o olhar de boa noite que só os gatos sabem ter.

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