sábado, 20 de julho de 2019






SERÁ QUE ALGUMA COISA ACONTECEU POR CAUSA DE ADRIANA?
(excerto)

Depois de breves quinze dias, Adriana partiu sem esses adeuses de cortar o coração.
O ônibus estava quase vazio e o rubro do sol matinal já surgia anunciando um outro dia abafado, irisando os para-brisas dos taxis estacionados à espera de passageiros, com o barulho do motor ligado obrigando todos a falar mais alto.
Despedidas, frases feitas, até algum dia, quem sabe?
O ônibus já se perdia na primeira curva, e Fredo começou a sentir um inexplicável alívio. Voltou para o apartamento meio compungido, afinal Dona Odete fora viajar e pediu para ele ficar tomando conta do imóvel até ela voltar, e ele aproveitou para transformar o santuário da velha senhora em um antro de farras.
O problema maior era aquele busto do índio de bronze com todos os colares do sincretismo religioso montando guarda sobre a cristaleira espelhada, que a tudo observava atentamente. O apartamento era demasiadamente pequeno para os dois, Fredo considerava.
Ele iria voltar para lá, colocaria tudo em ordem – a lâmpada nova na cozinha, o índio em posição de sentido, sempre alerta para combater as más influências, apertaria o botão de descarga, e começaria a frequentar o lugar apenas uma ou duas vezes por semana, deixando de programar suas orgias até a volta da velha senhora.
Ao chegar, foi abordado pelo porteiro – “telegrama para o senhor, ‘seu’ Fredo” – sempre amável e educado.
Tomou o elevador sem vontade de abrir o telegrama. Devia ser de Dona Odete dizendo em que lugar se encontrava no momento e que talvez fosse demorar mais um ano para voltar. Sai do elevador, percorre o corredor silencioso observado por todas as portas, gira a chave na fechadura e entra. O sol passa pela janela da cozinha e mesmo filtrado pela cortina mostra a sala em desordem.
Senta-se na velha poltrona e finalmente abre o telegrama. Lê vagarosamente, uma vez, duas vezes, a cada vez sentindo os cabelos se eriçarem na nuca.
“Dona Odete faleceu meia-noite pt corpo seguindo para São Paulo pt”.
Telegrama expedido do Rio de Janeiro.
Naquele instante, no seu carro funerário, Dona Odete devia estar cruzando na estrada com Adriana, no seu ônibus. Ambas dormindo.
Dona Odete partiu sem esses adeuses de cortar o coração.   


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