SERÁ QUE ALGUMA COISA
ACONTECEU POR CAUSA DE ADRIANA?
(excerto)
Depois de breves quinze dias, Adriana
partiu sem esses adeuses de cortar o coração.
O ônibus estava quase vazio e o rubro do
sol matinal já surgia anunciando um outro dia abafado, irisando os para-brisas
dos taxis estacionados à espera de passageiros, com o barulho do motor ligado obrigando
todos a falar mais alto.
Despedidas, frases feitas, até algum
dia, quem sabe?
O ônibus já se perdia na primeira curva,
e Fredo começou a sentir um inexplicável alívio. Voltou para o apartamento meio
compungido, afinal Dona Odete fora viajar e pediu para ele ficar tomando conta
do imóvel até ela voltar, e ele aproveitou para transformar o santuário da
velha senhora em um antro de farras.
O problema maior era aquele busto do
índio de bronze com todos os colares do sincretismo religioso montando guarda
sobre a cristaleira espelhada, que a tudo observava atentamente. O apartamento
era demasiadamente pequeno para os dois, Fredo considerava.
Ele iria voltar para lá, colocaria tudo
em ordem – a lâmpada nova na cozinha, o índio em posição de sentido, sempre alerta
para combater as más influências, apertaria o botão de descarga, e começaria a
frequentar o lugar apenas uma ou duas vezes por semana, deixando de programar
suas orgias até a volta da velha senhora.
Ao chegar, foi abordado pelo porteiro – “telegrama
para o senhor, ‘seu’ Fredo” – sempre amável e educado.
Tomou o elevador sem vontade de abrir o
telegrama. Devia ser de Dona Odete dizendo em que lugar se encontrava no momento
e que talvez fosse demorar mais um ano para voltar. Sai do elevador, percorre o
corredor silencioso observado por todas as portas, gira a chave na fechadura e
entra. O sol passa pela janela da cozinha e mesmo filtrado pela cortina mostra
a sala em desordem.
Senta-se na velha poltrona e finalmente abre
o telegrama. Lê vagarosamente, uma vez, duas vezes, a cada vez sentindo os
cabelos se eriçarem na nuca.
“Dona Odete faleceu meia-noite pt corpo
seguindo para São Paulo pt”.
Telegrama expedido do Rio de Janeiro.
Naquele instante, no seu carro
funerário, Dona Odete devia estar cruzando na estrada com Adriana, no seu
ônibus. Ambas dormindo.
Dona Odete partiu sem esses adeuses de
cortar o coração.
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