sábado, 24 de agosto de 2019





O ORGULHO  
(Excerto)


O palco da pantomima foi o escritório de uma poderosa estatal. Os personagens são o diretor geral Doutor Sacramento, a secretária Dona Júlia e eu, mísero office-boy.
Dona Júlia, um exemplo de dedicação, levantara aquele dia pisando com o pé esquerdo e num momento de irreflexão teve uma discordância com o chefe, que era um verdadeiro déspota.
Ele vestiu sua face com o seu olhar mais satânico e disse num tom tonitruante que pode ser ouvido em todo o andar: “Dona Júlia, chame o chefe do pessoal e peça para ele contratar uma nova secretária. E que seja bem rápido!”. Dona Júlia olhou com os olhos arregalados de quem está sendo despejada da casa e tendo que assinar a sua própria sentença. Aos cinquenta e alguns anos ela teria que ir à cata de um novo emprego, além de aturar o sorriso vencedor dos seus inimigos.
Dona Júlia desabou num desmaio que – comentam – teria sido mais histriônico que neurológico, mas eu me precipitei em socorrê-la, num ato de cavalheirismo extremo.   
Doutor Sacramento passou pelo corpo inerte e se dirigiu à sua sala como quem estivesse desviando de um cachorro morto. Bateu a porta com força sem olhar pra trás.
O chefe do pessoal veio e despediu não somente Dona Júlia por insubordinação, como a mim também, por conivência.

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Nosso reencontro foi dramático.
Quase quinze anos haviam transcorrido. Continuei meus estudos, e tudo aconteceu numa sequência muito rápida: a graduação, o mestrado, o doutorado no exterior, o cargo de diretor numa grande empresa multinacional e a gestão dos negócios da empresa junto ao governo.
Convocado para uma reunião onde seria decidido o investimento de alguns bilhões de dólares, encontrei-me novamente com a fera, já meio gasta, os olhos opacos e os poucos cabelos já definitivamente brancos, embora apresentando o mesmo ar de empáfia e superioridade, usando na cabeça a mesma coroa de louros – “Ave, Sacramentus!” – embora invisível.
O encontro se deu no elevador todo envidraçado em fumê. Ele me reconheceu e fez um muxoxo de desagrado, e este muxoxo se transformou em espanto quando ele entendeu que caberia a mim a condução dos negócios, interpelando e orientando a todos naquela enorme mesa de jacarandá, tendo ao fundo uma pintura de Gainsborough.
Ao fim da reunião, derrotado em todos os seus argumentos, Sacramento parecia um vaso Ming se fragmentando, um pergaminho se desfazendo, um frade nu.   
Soube que ele morreu um mês depois da reunião, amaldiçoado pelas pragas solitárias de Dona Júlia agravada por uma úlcera perfurada – dizem os especialistas.

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