LITERATURA ESPORTIVA
SESSENTA ANOS
O dramaturgo e
escritor Nelson Rodrigues não deixou por menos: depois dos fracassos de 1950 e
1954, ele profetizou que o Brasil jamais venceria uma Copa do Mundo porque seus
jogadores tinham um “complexo de vira-latas”. Escreveu, falou e repetiu, para
quem não tinha lido nem ouvido sua sentença de morte.
Só que sessenta
anos atrás, os vira-latas se transformaram em leões.
E o Anjo
Pornográfico “teve que engolir o escrete”, para usar uma expressão semelhante à
que mais tarde seria proferida por Zagallo – que era jogador em 1958 – quando,
como técnico, venceu a Copa América em La Paz em 1997, ao esbravejar contra as
críticas que vinha sofrendo por parte da imprensa.
Quando Zagallo
berrou para as câmeras de TV – “Vocês vão ter que me engolir!” – o Brasil já
havia levantado a Copa do Mundo quatro vezes – 1958, 1962, 1970 e 1994 – e a
zanga do velho lobo dizia respeito exclusivamente a si, não à seleção.
Nelson
Rodrigues, morto em 1980, não chegou a ver a expressão de fúria do treinador,
mas já havia visto sua teoria a respeito dos vira-latas ir a pique três vezes.
Ao voltar sessenta
anos no tempo, percebemos que o Brasil de 1958 foi um país iluminado, como
descrito pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos no seu livro “Feliz 1958 –
O ano que não devia terminar”, pois uma série de acontecimentos positivos
coroaram a arrancada para o seu desenvolvimento e reconhecimento que culminaria
dois anos depois com a fundação de Brasília e a consequente interiorização e
industrialização tão necessárias.
Foi no ano de
1958 que João Gilberto lançou o disco “Chega de Saudade”, que fundava oficialmente
a bossa nova. Foi em 1958 que o cinema novo foi exportado para a Europa, com o
filme “Rio, Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos, feito um ano antes. Em 1958
a arte arquitetônica de Oscar Niemeyer passou a ser sinônimo de modernidade e
bom gosto em todo o mundo.
Foi também em 1958
que Maria Esther Bueno, nossa tenista maior, ganharia o primeiro dos seus
dezenove títulos de Grand Slam e que Eder Jofre, nosso maior pugilista,
conquistaria o título nacional de peso galo, dando início à sua vitoriosa carreira
no exterior.
E foi em 1958
que a seleção brasileira de “Didi, Garrincha e Pelé deu o seu baile de bola”,
como cantava Jackson do Pandeiro, e conquistou a sua primeira Copa do Mundo,
com direito a uma goleada por 5x2 na final contra a Suécia anfitriã.
Assim, 1958 foi
o ano em que o Brasil se internacionalizou com uma base sólida na beleza
musical, na qualidade do esporte e também pela beleza da sua arquitetura, como
diz Joaquim Ferreira dos Santos.
O mundo de 1958
ainda era branco-e-preto, e assim ficou por mais de dez anos, até tingir a
década de 1970 de um colorido psicodélico e entrar num universo de cores
artificiais construídas pela tecnologia do fim do século.
Em termos de
futebol, 1958 foi o ano em que Nelson Rodrigues teve que mudar o seu discurso e
que marcou a saga do torcedor canarinho, que a cada Copa disputada (ganha ou
não) começou a pintar calçadas, a decorar as residências com bandeiras e as ruas
com bandeirolas, e a fazer um carnaval fora de época escudado na euforia dos
jornais, nas ondas do rádio – depois da televisão – e nas concentrações públicas
feitas para comemorar ou simplesmente torcer.
Aquele tempo
era mais fácil, pois o torcedor que ia aos estádios nos gloriosos fins de
semana gozava da intimidade de Garrincha, Pelé, Zito, Nilton Santos, Vavá,
Gerson, Tostão, Jairzinho, Rivellino e tantos outros, eis que todos eles
atuavam no Brasil, se digladiavam uns contra os outros nos clássicos de domingo
e podiam ser vistos nas ruas do bairro em que moravam.
Com o passar do
tempo, quer pela exportação dos nossos selecionáveis, nos privando da sua
companhia, quer pelo preço cobrado pelos ingressos para ver a “canarinho”
jogar, quer pela exiguidade de jogos realizados no nosso território, quer pela falta
de credibilidade dos senhores de gravata que comandavam o espetáculo, o futebol
do escrete saiu das gerais e foi para os camarotes.
A torcida
começou a torcer menos e a aplaudir mais, como se estivesse em um teatro. Famílias
inteiras paramentadas se divertiam como uma tarde no Grand Circus, e os
palavrões começaram a rarear.
O torcedor
comum canalizou o seu carinho no seu time de coração e foi aos poucos sendo substituído
por este outro tipo de entusiasta, que não perde tempo com o futebol de clubes,
só assiste jogos da seleção e torce coberto de artefatos – camisa amarela,
bandeiras, peruca, selfies, buzina, apito, reco-reco, surdo e tamborim – sem
saber sequer o nome daquele jogador que saiu na foto ao lado do Neymar.
Sessenta anos
representam duas gerações, e na velocidade cada vez maior em que o mundo gira,
duas gerações representam muita mudança.
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