sexta-feira, 1 de novembro de 2019





O MALDITO DO BAIRRO
(Excerto)

O maldito do bairro se chama Nicolau e vai casar por vingança.
Apaixonado já fora pela Crisolda dos quinze anos, ensandecido pela Crisolda dos vinte, desesperançado pela Crisolda dos vinte e cinco, irritado pela Crisolda dos trinta e ferido no ego pela Crisolda dos trinta e cinco.
O maldito do bairro, outrora ardente conquistador e viril amante de mil amores, a quem Clisolda dardejava olhares de desdém, vai se casar com o passado.
Nicolau guarda um pouco da maldição de todos os parentes pilantras e mal-amados, inclusive um atávico e incomodativo laço com um tio-avô que fez contrabando de cigarros falsificados durante a segunda guerra, com um irmão que foi para o reformatório e de lá para a cadeia, com um outro que se alistou na Marinha e até hoje singra mares nunca dantes nevegados  e com uma irmã que se perdeu com o cobrador no último banco do coletivo ao final da última viagem do dia.
Além do mais, bebia rabo-de-galo, assediava donzelas incautas, jogava sinuca usando camiseta encardida e chinelos rotos, usava o chulo como vocabulário favorito e fazia gestos obscenos para as donas de casa que passavam por ele em direção à missa das seis da tarde.
Agora, aos cinquenta e tantos anos de cachaça e malandragem, a cabeleira antigamente bem arranjada já bastante grisalha e falha como um galo velho, a barriga proeminente e a barba eternamente por fazer, Nicolau mantém o velho hábito de cuspir no chão segurando um palito entre os dentes e de coçar o saco encostado no poste diante do velho bar.
Cansado de tantas conquistas efêmeras e tantos amores clandestinos, revivendo a nostalgia dos velhos tempos e do fazendo um remake das suas grandes batalhas amorosas, ele resolveu se aproximar novamente de Crisolda num gesto de pura vingança de amante rejeitado.
Nicolau pesou e repesou, pensou e repensou, e finalmente ponderou que tal aventura poderia não ser a desventura que ele imaginava um casamento fosse. Crisolda fez o mesmo e, percebendo que o outono da vida não iria lhe proporcionar um parceiro mais adequado, aceitou o desafio como quem aceita fazer uma cirurgia de alto risco.
Dizem que o maldito do bairro vai finalmente se tornar um homem de respeito, embora todos evitem previsões sobre o possível aparecimento de Nicolauzinhos, Crisoldinhas e afins chilreando por algum canto da casa.      









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