segunda-feira, 6 de julho de 2020




AS CORES DO SWING
         (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 2 – O COMEÇO DE TUDO


No final da década de 1920, o jazz tradicional já havia deixado o seu berço na Louisiana e viajado em direção ao norte e centro-oeste dos Estados Unidos.
Essa viagem começara sem muito alarde cerca de vinte anos antes, com a subida dos alegres barcos a vapor ao longo do Rio Mississipi. Estas viagens fluviais eram animadas por bandas que tocavam o jazz original de Nova Orleans.
Músicos de reconhecida categoria, como King Oliver, Louis Armstrong, os irmãos Baby e Johnny Dodds, Zutty Singleton, Tommy Ladnier e Johnny St.Cyr chegaram a fazer parte das formações de um pianista de nome Fate Marable, que comandava uma das mais conhecidas orquestras fluviais, e ajudou a transportar a música do sul para outras paragens. Marable era contratado da companhia Strekfus Mississipi, responsável pelo serviço de navegação dos riverboats, que levava pessoas e mercadorias rio acima, de Nova Orleans para Saint Louis, e que mesmo sem ter tido a consciência histórica do seu trabalho, talvez tenha sido o maior divulgador do jazz no seu tempo.
Somente a partir de 1917, no entanto, com o fechamento da maioria das casas noturnas de Nova Orleans que se concentravam no bairro Storyville, por exigência da Marinha de Guerra, que considerava o clima dos cabarés lesivo à moral das tropas americanas, é que a migração do jazz em direção ao norte se consolidou como um verdadeiro êxodo.
É bem verdade que os bordéis de Storyville abrigavam na sua grande maioria apenas os pianistas de jazz, pois os músicos que tocavam instrumentos de sopro costumavam tocar em clubes ou nas ruas. Existe, portanto, um certo exagero na lenda de que o jazz se pôs na estrada exclusivamente em virtude da intervenção das Forças Armadas, embora há de se convir que historicamente foi a partir daí que a sua migração maciça realmente teve início.
É fato também que desde 1915 – ou seja, antes da propalada extinção de Storyville – muitos artistas de Nova Orleans já haviam começado a ir para o norte, notadamente Chicago, ou para a região da Califórnia. Nesse ano, a Original Dixieland Jass Band já estivera em Chicago, onde se apresentara usando o nome de Brown’s Dixieland Jass Band (o grupo iria depois para Nova York, em 1917, para tocar no famoso Reisenweber Restaurant, no Columbus Circle).
O pianista Eubie Blake já havia deixado Nova Orleans há algum tempo, e no início de 1917 o também pianista Fate Marable, aquele famoso pela sua banda de riverboats, estava praticamente radicado em Saint Louis.
Também o clarinetista Lawrence Duhé, um dos bem-sucedidos músicos da Louisiana, já havia partido para Chicago em 1916, para tocar ao lado da pianista Lil Hardin.
Assim, durante os anos 1915 a 1920, devido à chegada de tantos músicos do sul, Chicago se transformara na nova capital do jazz. Em 1920 lá se encontravam, entre outros, King Oliver, Johnny Dodds, Jimmie Noone, Honoré Dutrey, Natty Dominique, Minor “Ram” Hall e duas bandas brancas de dixieland muito conceituadas – a Original Dixieland Jass Band e a New Orleans Rhythm Kings.
Naquela época existia uma total falta de intercâmbio entre as diferentes correntes artísticas, o que fazia com que o país se dividisse em regiões musicais específicas.
O sul havia descoberto a forma revolucionária do jazz através da combinação do blues, do ragtime e da magia das bandas militares, enquanto o oeste cultivava um tipo de música voltada quase que exclusivamente para o estilo rural. O centro do país já experimentava desde as últimas décadas do século dezenove a música pianística do ragtime, cujos intérpretes utilizavam às vezes uma roupagem orquestral que incluía até o violino – ou a rabeca. O sudoeste recebia uma forte influência hispânica devido à proximidade com a fronteira mexicana (a República do Texas, que ficara independente do México em 1837, optou pela sua anexação aos Estados Unidos, o que ocorreu em 1845), e o norte-nordeste, mais elitizado, buscava uma espécie de supremacia cultural com a presença das grandes orquestras de salão com uma roupagem vinda diretamente da Europa.
Com a viagem do jazz tradicional para outros recantos, houve uma considerável troca de informações entre os diferentes estilos tocados no país. Pouco a pouco a música tocada nas mais variadas regiões do território americano foi absorvendo a alma da música proveniente do sul.
O jazz tradicional levava na sua bagagem um maravilhoso baú de novidades harmônicas que funcionaram como verdadeiros adereços festivos. Estes adereços foram aceitos e utilizados até pelos músicos mais ortodoxos, e prepararam o caminho definitivo da nova música norte-americana. O magnetismo desta nova corrente musical iria, em pouco tempo, transformar a música popular não apenas na América, mas em todo o mundo.
Todavia, esta viagem musical também fez com que as músicas cultivadas em Nova Orleans – o blues, o stomp, o new orleans style – também começassem a receber uma série de influências com respeito à sua forma de interpretação e ao seu desenvolvimento harmônico. Assim, o jazz tradicional, apesar de continuar evidenciando a essência mais pura do blues, começava a incorporar outros elementos musicais, o que tornava as fórmulas jazzísticas mais impuras, porém mais ricas e mais bem-elaboradas.
Em 1928, o pianista, compositor e cantor Jelly Roll Morton, que um ano antes havia revolucionado o stomp com uma sutileza harmônica até então desconhecida ao compor a música “The Pearls”, gravou com os seus Red Hot Peppers duas peças que começariam a modificar o aspecto orquestral da música originária da Louisiana, chamadas “Georgia Swing” e “Kansas City Stomp”.
Alguns pesquisadores atribuem a estas versões a própria origem do swing, talvez por causa do inter-relacionamento diferente entre os instrumentos, ou quem sabe pela simples menção da palavra “swing” na música alusiva à Georgia.
Morton, um dos pioneiros do jazz, havia percebido antes de muita gente a importância de um movimento inovador a partir do ragtime, e teve a coragem de mudar a estrutura da música, sendo um dos primeiros músicos conhecidos a experimentar o off-beat – uma inversão no acento percussivo – e a explorar as blue notes – notas diminuídas na linha melódica – dentro da interpretação jazzística do início do século vinte.
Ciente da sua importância, ele mandou confeccionar cartões de visita nos quais se intitulava “o inventor do jazz e da hot music”, título no qual ele realmente acreditava, embora pouca gente o tenha levado realmente a sério.
Quando Morton e outros músicos subiram o Rio Mississipi em direção a Saint Louis, e depois a Kansas City, o off-beat e as blue notes subiram junto com eles, e foram sendo espalhados pelo caminho como autênticas sementes do jazz.
Kansas City, Saint Louis e Sedalia eram cidades intensamente musicais, onde durante os primeiros anos do século vinte reinou o ragtime de Scott Joplin, James Scott e Tom Turpin.
A passagem do jazz por Kansas City, porém, modificou a estrutura do ragtime, dando lugar a uma música orquestrada que se diferenciava do som convencional existente, por introduzir um número maior de instrumentos e por produzir o som de um autêntico jazz de salão.
Devido a esta formação orquestral, alguns historiadores vêem em Kansas City o verdadeiro berço daquela música que alguns anos mais tarde se convencionaria chamar de swing.
Em 1929, Kansas City possuía algumas orquestras de primeira linha, como a do pianista Bennie Moten, a do saxofonista Andy Kirk e a chamada Blue Devils dirigida pelo contrabaixista Walter Page. Todas elas faziam um blues dançante que seria, na visão de muitos historiadores, o verdadeiro embrião do swing.
Alguns anos mais tarde, Kansas City apresentaria ao país a melhor orquestra de jazz nascida na região, comandada pelo pianista Count Basie, que tocava um swing com uma forte pegada de blues e bastante impregnado de negritude, ao contrário da maioria das orquestras do eixo Chicago-Nova York. O estilo de Basie se tornou tão marcante que acabou recebendo o nome específico de “jazz kansas city style”, ou simplesmente “kansas city”.
Outros críticos sustentam que a denominação “swing teria nascido em Nova York com a orquestra de Duke Ellington, a partir da sua música “It Don’t Mean A Thing (If It Ain’t Got That Swing)”, que era baseada em um extraordinário naipe de saxofones composto por Johnny Hodges, Barney Bigard, Harry Carney e Otto Hardwicke.
Mesmo sendo a palavra “swing” já utilizada por Jelly Roll Morton, foi Ellington quem lhe deu a exata conotação do estilo de música que então se forjava, daí estabelecendo uma espécie de marco inicial.
Ellington com certeza não tinha a intenção de criar um rótulo, mas “It Don’t Mean A Thing” fugia da linha “jazz sinfônico” ou do “jungle beat” típicos da sua orquestra, e se transformou num clássico dançante, emoldurando as noites do Cotton Club, no coração do Harlem. A música serviu na época para projetar a sua orquestra para além do convencional.
Ellington, no entanto, não se preocupava muito com isso. Na verdade, ele chegaria a declarar alguns anos depois, quando o swing se consolidava como uma música das multidões, que “jazz é música, swing é negócio”.
A febre do swing tomava conta de Nova York e se ramificava para Chicago, Detroit, Kansas City e outras cidades do país. Dezenas de orquestras foram surgindo, e outras já existentes começaram a adaptar o seu estilo dentro da nova característica. Os casais que participavam dos elegantes saraus dançantes exibindo seus passos de dança de uma forma comportada e vitoriana mudaram a sua postura e começaram a se esbaldar ao som mais quente da novidade.
Em 1934 a nova fórmula já estava totalmente consolidada, e o novo som orquestral mostrava a sua face através dos irmãos Tommy e Jimmy Dorsey, que entremeavam músicas românticas com o intrépido swing, contando com arranjos e adaptações de um jovem e talentoso trombonista chamado Glenn Miller. O swing adquiria consistência não apenas na sua forma dançante, mas também dentro de uma abordagem mais romântica e sentimental.
Paul Whiteman já havia desistido de jazzificar a sua música, e a Casa Loma havia mudado tantas vezes de maestro que já não fazia mais parte das paradas. No entanto, vários outros grupos continuavm firmes na estrada, como as orquestras de Fletcher Henderson, Don Redman, Cab Calloway, Chick Webb e Jimmie Lunceford.
Para a grande maioria dos biógrafos do swing, porém, a virada realmente começou a partir de 1935, quando o clarinetista Benny Goodman deu ao estilo a sua devida dimensão, alcançando uma abrangência de amplitude nacional e fazendo com que o país viesse literalmente a se curvar diante da força interpretativa da sua música.
O boom experimentado pelo swing, especialmente entre os adolescentes, teve a mesma força que o início da febre do rock and roll conferiu vinte anos depois.
Até meados dos anos 1950 o swing reinou absoluto, e mais orquestras pontificaram, lotando os salões nos quais se apresentavam, recheando com seus acordes musicais o trabalho de solistas e vocalistas de grande talento, para a borbulhante e colorida alegria de toda uma geração.



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