ESTRANHO AMANHECER
(Republicado, extraído de A
MACHADINHA)
Augusto Pellegrini
Augusto Pellegrini
Ao badalar da meia-noite ele se mira no
espelho quase apagado pela luz fraca de quarenta velas que vem da lâmpada
incandescente pendurada no teto do quarto, e vê seus olhos fundos e cansados, o
cabelo como sempre em desalinho e a barba geralmente por fazer, a cara mal
lavada.
Ele caminha pelo cômodo à procura dos
seus pertences, uma pequena maleta com alguns apetrechos esparsos atirada no
canto da cama e um pequeno crucifixo de metal escurecido que jaz sobre a mesa
ao lado de uma bacia com água.
Faz frio. Ele veste uma camisa de
flanela xadrez por sobre a camiseta de um branco encardido e coloca por cima da
camisa um casaco já bastante usado, enfia o boné na cabeça, apanha a maleta e
sai pela porta escura de madeira envelhecida portando no rosto uma expressão
dura e embrutecida e os olhos opacos dos desajustados. Tranca a porta com uma
chave que traz presa a uma argola e a enfia no bolso lateral do casaco junto
com o crucifixo.
A noite está terrivelmente feia, uma
dessas noites propícias para crimes sem testemunhas.
Ele caminha lentamente pela rua como se
procurasse algo, levanta a gola do casaco para suportar a navalha de vento que
lhe rasga a nuca e vê a própria sombra na calçada, ora se alongando, ora dele
se aproximando a cada poste alcançado, na sua luz amarela com jeito de
lamparina.
O chão de pedras brilha umedecido pela
neblina espessa e a sua mente é um torvelinho confuso, a mão apertando com
força o crucifixo e a chave como se fossem dois talismãs.
-0-0-0-
Antes do alvorecer, ouvem-se passos
descompassados como um coração em sobressalto. Os passos vêm das ruas mal
calçadas do outro lado da cidade e a esta altura alcançam o chão pavimentado
com pedras, onde algum dia as carruagens deixaram a sua marca tão forte que até
hoje sente-se nos ouvidos o poc-potoc das patas dos cavalos.
Ele cambaleia levemente devido a algum
passo em falso, se recompõe, passa pelo chafariz sem vida e olha para o alto
onde uma janela teimosamente acesa começa a formar um quadro com o escuro do
céu já não tão negro, emprestando devagar as cores do alvorecer. Depois, passa
pelos becos onde latas de lixo se confundem com insetos e ratos que não dormem.
Penosamente o caminhante alcança o
prédio onde mora, abre a porta pesada que geme nas dobradiças e sobe lentamente
um lance de escadas cuja madeira range pelo peso do tempo.
Entra enfim no seu aposento singular,
exausto como um sodado batendo em retirada, trêmulo como um assassino compulsivo,
arfante como quem cumpriu penosamente com o seu dever.
Joga a valise e o boné num canto, tira o
casaco e mostra uma camiseta encardida e manchada se sangue. Há um rasto
escarlate também no seu rosto suado, tisnando a barba malfeita.
Senta-se pesadamente ao pé da cama e
olha para o chão em direção às botinas enlameadas, depois ergue os olhos e se
depara com a bacia de ferro esmaltado cheia de água onde vai lavar os seus
pecados.
Está farto das madrugadas sombrias e do
cheiro da morte.
Está farto de tanto sangue, do gemido
surdo, da faca afiada, do rasgar de ventres e da machadinha a dilacerar ossos,
está farto da sua sina.
Ainda pela manhã ele vai ao escritório
do frigorífico no qual trabalha para pedir demissão do serviço penoso que faz
há anos como magarefe no matadouro da cidade, todas as noites decepando membros,
sangrando e esfolando bois.
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