EU
SOU SUA MÃE...
(excerto republicado)
No relativo silêncio do bar,
localizado em uma travessa tranquila a três quarteirões da avenida principal,
com o tráfego rigorosamente reservado aos moradores, uma voz estridente falava
– um outro só ouvia e assentia – o que facilitou a minha audição. Não me senti
indiscreto, afinal eu já estava lá antes de eles chegarem, e na falta do que
fazer, prestei atenção no colóquio, na verdade um quase monólogo.
O sujeito falante fazia comentários
sobre alguém que logo percebi tratar-se de sua filha chamada Ana Clara, “que só
tem dois anos, mas já é esperta e tagarela como quê!”
O homem teceu longos elogios à
beleza e inteligência da pequena, descendo a detalhes que só interessam aos
pais, enquanto o outro apenas ouvia entre o desinteressado e o enfadado, e
emitia uma ou outra interlocução.
“Todos sempre dizem que minha
filha é muito parecida com a avó – minha mãe. Eu, especialmente, sempre notei certos
trejeitos muito particulares que fazem lembrar minha mãe, como inclinar o
pescoço para o lado esquerdo quando se intrigava com alguma coisa, ou apertar a
ponta do nariz quando estava contrariada.
Minha mãe morreu há seis anos,
mas eu continuo morando na mesma casa em que vivíamos, por ser um bem de
família e eu ser um filho único. Eu ainda sinto a sua presença na sala, como se
ela estivesse lá, no mesmo lugar, vendo televisão, ou mesmo à noite, diante da
porta fechada do quarto onde ela dormia.
Minha mulher diz que não
acredita nessas coisas e que é para eu deixar de bobagem. Chegou a mudar os
móveis de lugar e a transformar o quarto que minha mãe ocupava em dispensa e
adega.
Diz também que há muito exagero
quando eu me refiro à sua semelhança com Clarinha. ‘Uma criança se parece com
outra criança, não com uma velha de oitenta anos’, disse ela. Eu me senti um
pouco indignado com a forma como ela se referia à minha mãe, mas assenti, mudo,
para evitar maiores aborrecimentos.
Outro dia Clarinha estava
fazendo uma malcriação qualquer, dessas que os pais toleram com um riso amarelo
e que os amigos sentem vontade de pespegar logo umas palmadas. Birra, dizem os
psicólogos, manha, dizem os avós.
Mas a malcriação começou a
ficar insistente e eu comecei a perder a paciência. Afinal, eu havia tido uma
educação que, se não foi demasiadamente severa, pelo menos foi muito firme, e
essa educação não admitia discussões com meus pais sobre quem estava certo e
quem estava errado.
Assim, pela malcriação e pela
tentativa de me vencer pelos gestos e pelos resmungos, eu comecei a
repreendê-la, primeiro carinhosamente, como convém à repreensão a uma criança
de dois anos e meio; depois, como a malcriação aumentava, procurei com mais
empenho usar a razão, e finalmente apelei para a autoridade, talvez de uma
forma equivocada e precoce, considerando a idade da menina.
Eu falei para ela, de uma forma
bastante incisiva, elevando o tom de voz e brandindo o dedo indicador – ‘minha filha,
me respeite, porque eu sou o seu pai!’.
Fez-se um pesado silêncio, e eu
temi pela consequência da minha súbita explosão – um muxoxo magoado ou talvez
um choro convulsivo.
Ela, porém, permaneceu estática
por um momento, depois olhou seriamente para mim, apertou a ponta do narizinho,
pendeu o pescoço para o lado esquerdo e disse, com uma seriedade e um tom de
voz que nada tinha de infantil:
‘...E eu sou a sua mãe!’.
Calei, não ser ter sentido
antes uma súbita onda de calor e frio a me subir pela espinha.
Minha mulher a tudo observava,
boquiaberta e com o olhar imóvel, encostada no batente da porta”.
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