AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 14 - A MÚSICA CHINESA
O
maestro parecia
um touro ensandecido, e quase pôs a porta abaixo com um safanão de balançar as
estruturas ao adentrar o largo camarim com a força de um furacão.
Absolutamente
transtornado, ele partiu na direção do jovem trompetista que fazia no momento
algum comentário alegre com um companheiro da orquestra enquanto guardava o seu
instrumento no estojo.
O clima era
festivo, como sempre ocorria depois das apresentações bem sucedidas. Os músicos
tiravam o paletó e afrouxavam o colarinho em meio a alguns goles de água e uma
bicada na garrafinha de uísque comunitária – “para relaxar”, diziam eles.
A orquestra dera
mais uma demonstração do seu poderio, e o público mais uma vez concedera nota
dez para o trabalho executado pelo grupo, que misturava o seu repertório de swing com muita dança, um canto alegre e
uma boa dose de diversão.
Mas o maestro
estava profundamente indignado.
Alguém tentara
fazê-lo de palhaço atirando bolas de papel molhado nas suas costas enquanto ele
agradecia os fartos aplausos. E ele sabia que o engraçadinho fora aquele
trompetista jovem e insolente que queria aparecer mais do que ele.
Dirigiu-se ao
subalterno e, dedo em riste, desandou a chamá-lo de moleque e a exigir
respeito, pois que “ele não era da sua laia”.
O trompetista teve
uma reação no mínimo inusitada. Apesar da ameaça iminente, encarou o líder com
uma expressão de desdém, olhando fixamente nos seus olhos, inclinou a cabeça
para o lado e perguntou candidamente:
“ Whassamatter, boss? Ya’nervous?”
O assim chamado
chefe não titubeou e desceu o braço sobre o músico, enquanto os demais
circunstantes, surpresos por tão insólita situação, ficaram momentaneamente
paralisados.
O rapaz levantou
os braços na tentativa de se proteger contra a saraivada de socos que desabavam
sobre a sua cabeça como se uma parede de tijolos estivesse ruindo e se afastou
celeremente em direção ao balcão em frente ao espelho, adornado por cremes para
o cabelo, pentes, copos de café, lenços de papel e algumas partituras
espalhadas ao léu.
Quer por falta de
condições físicas, quer por respeito ao maestro, quer por medo de receber algum
sopapo de graça, os músicos não estavam fazendo muita questão de encarar a
confusão, e a coisa se estendeu por alguns segundos, que pareceram horas.
Cansado de
apanhar, o trompetista decidiu reagir, transformando o camarim num palco de
briga de rua, com socos e pontapés disparados a esmo, ao mesmo tempo em que
alguns dos músicos presentes decidiram finalmente se amontoar para tentar
conter a fúria de um e o desespero do outro.
De repente, o
trompetista vislumbrou um pequeno objeto brilhando no meio da confusão de
cremes, pentes e copos de café que estavam espalhados sobre o balcão. Era o
canivete que Leroy Maxey usava para apertar parafusos dos elementos da bateria,
e que agora serviria bem a propósito. Rápido como um azougue, apanhou a arma e,
às cegas, começou a golpear o que parecia ser o seu agressor.
Ferido na coxa, o
chefe soltou um berro e deu um pulo pra trás. O sangue começou a se espalhar
sobre a calça azul claro, provocando um interessante contraste de cores.
A confusão parou
por aí e deu origem ao pânico, logo controlado pela perícia de um dos rapazes
que possuía uma razoável noção de primeiros socorros.
A paz foi conseguida
graças à gravidade do problema e à intervenção de Jonah Jones e Milt Hinton,
dois dos mais respeitados músicos da orquestra, que de pronto assumiram a
responsabilidade pelo episódio das bolinhas que tanto havia desagradado o
maestro.
Tal qual um leão
ferido, e humilhado por se ver subitamente sem calças diante dos seus
comandados, com uma toalha molhada amarrada próximo ao joelho pelo esperto
enfermeiro ocasional para estancar o sangue, o chefe demitiu o trompetista no
ato, mesmo sem ele ter tido qualquer culpa no cartório.
-0-0-0-
Cab Calloway estava
estudando um novo tipo de dança que pretendia incluir no seu vasto repertório
ainda naquela semana durante um show no Athens Club.
O local do ensaio
era o palco do Cotton Club, prestigiado salão onde ele se iniciara com a sua
orquestra cerca de oito anos atrás e que na temporada atual era ocupado por
Louis Armstrong e seus músicos. Além de Cab e de dois ou três assistentes que
eram pau para toda obra, estavam presentes apenas o baterista Leroy Maxey, que
fazia a marcação com as mãos, o pianista Benny Payne, que ajudava na harmonia e
o trombonista Tyree Green, que apenas observava.
Alguns empregados
da casa estavam ocupados na limpeza do salão e no empilhamento de cadeiras,
enquanto outros distribuíam taças e copos sobre o balcão e arrumavam as
garrafas nas prateleiras.
Calloway era um
especialista naquele tipo de dança que ele próprio havia batizado de jitterbug – que nada mais era do que uma
versão mais comportada do lindy hop,
posto que ele jamais se plantava de pernas para o ar, mas deslizava
graciosamente na sola dos pés, antecipando aquilo que vinte anos mais tarde
seria apresentado por James Brown e outros vinte anos além pelo pirotécnico
Michael “Moon Walk” Jackson.
Um dos empregados
do Cotton Club se aproximou de um dos assistentes e falou alguma coisa no seu
ouvido. O assistente, com pouco tempo de casa, olhou para o patrão que
continuava a exercitar os seus passos e não tentou interromper, buscando apoio
no assistente-sênior:
“Hey, Jack! Tem um cara lá fora querendo
falar com o patrão. Diz que é músico”.
No que Jack,
diligentemente, chamou o empregado do clube e deu algumas instruções. Um minuto
depois, o rapaz voltou e disse que o intruso se chamava “não-sei-o-quê
Gillespie” e que queria falar com Mr. Calloway.
Maxey interrompeu
a batida de mão e Cab interrompeu a dança numa posição que seria cômica, não
fosse a sua expressão de aborrecimento. Alguns acordes do piano permaneceram no
ar.
De uma maneira
geral Cab Calloway era uma pessoa afável e cordata, mas naquele dia ele estava
particularmente irritado por causa da falta de comprometimento de alguns dos
seus músicos, em especial um trompetista chamado Jerry Schwenck, que havia
começado há menos de um mês e já faltara a três ensaios e a uma apresentação.
Quebrado o encanto
da dança, Calloway fez um gesto para deixar o rapaz entrar.
“Gillespie...”,
pensou ele.
Ele já ouvira
falar num tal de Gillespie que havia participado da orquestra de Teddy Hill.
Tinha boa referência dele como músico, mas havia saído da banda de Hill debaixo
de comentários de que não era muito certo da cabeça.
Calloway parecia
não ser muito certo da cabeça também, mas sua maluquice era puro jogo de cena.
Não é com a cabeça nas nuvens que uma pessoa consegue comandar uma orquestra
com tamanha perfeição, principalmente não sendo músico de ofício. Mas ele
provinha de uma boa cepa, tivera uma educação esmerada e amadurecera o seu
talento natural em escolas de renome, conseguindo perfeitamente gerenciar as
atividades dos músicos, pois possuía um grande senso de liderança e um ouvido
musical dos mais apurados.
Seu cabelo
cuidadosamente desalinhado e fixado com brilhantina e suas roupas extravagantes
eram apenas um pretexto para fazer o público ficar ligado na sua performance,
que misturava dança, sapateado e um canto alegre e cheio de maneirismos.
Ele agora tinha
diante de si um rapaz na casa dos vinte anos (vinte e dois, como seria mostrado
mais tarde) que falava com muita desenvoltura.
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