sexta-feira, 2 de outubro de 2020

 


AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 14 - A MÚSICA CHINESA

O maestro parecia um touro ensandecido, e quase pôs a porta abaixo com um safanão de balançar as estruturas ao adentrar o largo camarim com a força de um furacão.

Absolutamente transtornado, ele partiu na direção do jovem trompetista que fazia no momento algum comentário alegre com um companheiro da orquestra enquanto guardava o seu instrumento no estojo.

O clima era festivo, como sempre ocorria depois das apresentações bem sucedidas. Os músicos tiravam o paletó e afrouxavam o colarinho em meio a alguns goles de água e uma bicada na garrafinha de uísque comunitária – “para relaxar”, diziam eles.

A orquestra dera mais uma demonstração do seu poderio, e o público mais uma vez concedera nota dez para o trabalho executado pelo grupo, que misturava o seu repertório de swing com muita dança, um canto alegre e uma boa dose de diversão.

Mas o maestro estava profundamente indignado.

Alguém tentara fazê-lo de palhaço atirando bolas de papel molhado nas suas costas enquanto ele agradecia os fartos aplausos. E ele sabia que o engraçadinho fora aquele trompetista jovem e insolente que queria aparecer mais do que ele.

Dirigiu-se ao subalterno e, dedo em riste, desandou a chamá-lo de moleque e a exigir respeito, pois que “ele não era da sua laia”.

O trompetista teve uma reação no mínimo inusitada. Apesar da ameaça iminente, encarou o líder com uma expressão de desdém, olhando fixamente nos seus olhos, inclinou a cabeça para o lado e perguntou candidamente:

Whassamatter, boss?  Ya’nervous?

O assim chamado chefe não titubeou e desceu o braço sobre o músico, enquanto os demais circunstantes, surpresos por tão insólita situação, ficaram momentaneamente paralisados.

O rapaz levantou os braços na tentativa de se proteger contra a saraivada de socos que desabavam sobre a sua cabeça como se uma parede de tijolos estivesse ruindo e se afastou celeremente em direção ao balcão em frente ao espelho, adornado por cremes para o cabelo, pentes, copos de café, lenços de papel e algumas partituras espalhadas ao léu.

Quer por falta de condições físicas, quer por respeito ao maestro, quer por medo de receber algum sopapo de graça, os músicos não estavam fazendo muita questão de encarar a confusão, e a coisa se estendeu por alguns segundos, que pareceram horas.

Cansado de apanhar, o trompetista decidiu reagir, transformando o camarim num palco de briga de rua, com socos e pontapés disparados a esmo, ao mesmo tempo em que alguns dos músicos presentes decidiram finalmente se amontoar para tentar conter a fúria de um e o desespero do outro.

De repente, o trompetista vislumbrou um pequeno objeto brilhando no meio da confusão de cremes, pentes e copos de café que estavam espalhados sobre o balcão. Era o canivete que Leroy Maxey usava para apertar parafusos dos elementos da bateria, e que agora serviria bem a propósito. Rápido como um azougue, apanhou a arma e, às cegas, começou a golpear o que parecia ser o seu agressor.

Ferido na coxa, o chefe soltou um berro e deu um pulo pra trás. O sangue começou a se espalhar sobre a calça azul claro, provocando um interessante contraste de cores.

A confusão parou por aí e deu origem ao pânico, logo controlado pela perícia de um dos rapazes que possuía uma razoável noção de primeiros socorros.

A paz foi conseguida graças à gravidade do problema e à intervenção de Jonah Jones e Milt Hinton, dois dos mais respeitados músicos da orquestra, que de pronto assumiram a responsabilidade pelo episódio das bolinhas que tanto havia desagradado o maestro.

Tal qual um leão ferido, e humilhado por se ver subitamente sem calças diante dos seus comandados, com uma toalha molhada amarrada próximo ao joelho pelo esperto enfermeiro ocasional para estancar o sangue, o chefe demitiu o trompetista no ato, mesmo sem ele ter tido qualquer culpa no cartório.

 

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Cab Calloway estava estudando um novo tipo de dança que pretendia incluir no seu vasto repertório ainda naquela semana durante um show no Athens Club.

O local do ensaio era o palco do Cotton Club, prestigiado salão onde ele se iniciara com a sua orquestra cerca de oito anos atrás e que na temporada atual era ocupado por Louis Armstrong e seus músicos. Além de Cab e de dois ou três assistentes que eram pau para toda obra, estavam presentes apenas o baterista Leroy Maxey, que fazia a marcação com as mãos, o pianista Benny Payne, que ajudava na harmonia e o trombonista Tyree Green, que apenas observava.

Alguns empregados da casa estavam ocupados na limpeza do salão e no empilhamento de cadeiras, enquanto outros distribuíam taças e copos sobre o balcão e arrumavam as garrafas nas prateleiras.

Calloway era um especialista naquele tipo de dança que ele próprio havia batizado de jitterbug – que nada mais era do que uma versão mais comportada do lindy hop, posto que ele jamais se plantava de pernas para o ar, mas deslizava graciosamente na sola dos pés, antecipando aquilo que vinte anos mais tarde seria apresentado por James Brown e outros vinte anos além pelo pirotécnico Michael “Moon Walk” Jackson.

Um dos empregados do Cotton Club se aproximou de um dos assistentes e falou alguma coisa no seu ouvido. O assistente, com pouco tempo de casa, olhou para o patrão que continuava a exercitar os seus passos e não tentou interromper, buscando apoio no assistente-sênior:

Hey, Jack! Tem um cara lá fora querendo falar com o patrão. Diz que é músico”.

No que Jack, diligentemente, chamou o empregado do clube e deu algumas instruções. Um minuto depois, o rapaz voltou e disse que o intruso se chamava “não-sei-o-quê Gillespie” e que queria falar com Mr. Calloway.

Maxey interrompeu a batida de mão e Cab interrompeu a dança numa posição que seria cômica, não fosse a sua expressão de aborrecimento. Alguns acordes do piano permaneceram no ar.

De uma maneira geral Cab Calloway era uma pessoa afável e cordata, mas naquele dia ele estava particularmente irritado por causa da falta de comprometimento de alguns dos seus músicos, em especial um trompetista chamado Jerry Schwenck, que havia começado há menos de um mês e já faltara a três ensaios e a uma apresentação.

Quebrado o encanto da dança, Calloway fez um gesto para deixar o rapaz entrar.

“Gillespie...”, pensou ele.

Ele já ouvira falar num tal de Gillespie que havia participado da orquestra de Teddy Hill. Tinha boa referência dele como músico, mas havia saído da banda de Hill debaixo de comentários de que não era muito certo da cabeça.

Calloway parecia não ser muito certo da cabeça também, mas sua maluquice era puro jogo de cena. Não é com a cabeça nas nuvens que uma pessoa consegue comandar uma orquestra com tamanha perfeição, principalmente não sendo músico de ofício. Mas ele provinha de uma boa cepa, tivera uma educação esmerada e amadurecera o seu talento natural em escolas de renome, conseguindo perfeitamente gerenciar as atividades dos músicos, pois possuía um grande senso de liderança e um ouvido musical dos mais apurados.

Seu cabelo cuidadosamente desalinhado e fixado com brilhantina e suas roupas extravagantes eram apenas um pretexto para fazer o público ficar ligado na sua performance, que misturava dança, sapateado e um canto alegre e cheio de maneirismos.

Ele agora tinha diante de si um rapaz na casa dos vinte anos (vinte e dois, como seria mostrado mais tarde) que falava com muita desenvoltura.

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