RUA DA MISERICÓRDIA
(Republicado, extraído de O
CONTADOR DE HISTÓRIAS)
Augusto Pellegrini
Quem desce a Rua da Misericórdia tem a impressão de que está se
dirigindo ao fundo de um poço. Lá em baixo, mesmo quando brilha o sol, a luz parece
não chegar com intensidade nem irradiar o seu calor.
Muitas pessoas vão à praça quase
todos os dias, vindas de diversos lugares, e descem os duzentos metros de rampa
em direção à casa de número 341, um pequeno sobrado com pintura verde descascada
em frente a um calçamento cheio de trincas, por onde crescem ervas rasteiras que
formam figuras irregulares, mas mesmo assim bastante agradáveis de se ver.
Essas pessoas peregrinam com a intenção de consultar um mago, e têm na mente a fantasia
e a esperança de resolver as suas dores da alma.
Na casa, ao lado da porta e de uma janela que está sempre fechada, há uma
placa que serve de chamariz e indicativo a tantos visitantes – “Professor Galba”
– e em letras menores – “Qualquer que seja o seu problema, ele será resolvido”.
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Certo dia surgiu no consultório um homem estranho que não quis preencher
ficha nem declinar qual seria o seu problema, apenas se identificou como
Inspetor Ramalho.
O professor ficou impressionado com o porte do indivíduo: meia idade, altura
avantajada, ombros largos, má catadura, calvo da testa até o alto da cabeça,
mas com cabelos desordenados nas laterais, chegando mesmo a cobrir as orelhas.
Trajava um casaco escuro por cima de uma camisa xadrez, o que lhe conferia um
aspecto de lenhador.
O Inspetor foi direto ao ponto: na próxima semana iria trazer uma pessoa
para ser consultada, e esta pessoa, no menor prazo possível deveria ser
estimulada a cometer suicídio. Para tanto, o professor receberia uma alta quantia,
que seria paga depois que o cidadão partisse desta para melhor.
Caso se negasse a atender ao pedido, o professor seria preso por prática
ilegal da profissão e sua vida se transformaria num inferno, correndo mesmo o
risco de perdê-la numa das esquinas tortuosas da cidade (e fez um gesto
assustador com a mão, cortando o ar com energia – zás – como se estivesse rasgando
uma garganta).
Olhou fixamente nos olhos do assustado professor e deu um aviso: “Você
não conseguirá me localizar nem adianta fazer qualquer denúncia à polícia,
pedindo proteção. Eu sou a polícia”.
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Num final de tarde, o sombrio Inspetor apareceu no consultório na
companhia de um homem rechonchudo e de faces coradas como um bebê premiado, um tipo
que simplesmente ama a vida e a quem nada poderia causar desespero ou a busca
de soluções extremas, exatamente o oposto do que se espera de um suicida.
O professor Galba chamou o Inspetor para a sua sala, pois precisava
conversar sobre alguns detalhes que no seu dizer facilitariam a empreitada.
Sentaram-se frente a frente e o professor ofereceu um cálice de grappa
para aquecer a conversa e facilitar o diálogo. O Inspetor concordou de bom
grado em tomar alguns goles e o professor apanhou a garrafa, serviu os dois
cálices e começou uma peroração que indicava ao policial que tudo estava sob
controle e que o plano seria cumprido sem maiores dificuldades.
O Inspetor sorveu a bebida de uma talagada, mostrando apreciação pela sua
qualidade e pela cumplicidade do professor, e decidiu tomar mais uma dose,
desta vez sorvendo civilizadamente, enquanto o plano de execução da ideia era explicado
em detalhes através de uma bem elaborada história.
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Dois dias depois, os jornais da cidade falavam com estardalhaço sobre um
corpo encontrado debaixo da ponte, ao lado sul do porto. A cidade, normalmente tranquila,
estava alvoroçada, pois raramente servia de modelo para manchetes deste tipo.
O cadáver encontrado era de um homem alto e calvo, e apresentava um
profundo talho na garganta, mas os exames de praxe mostraram que a vítima havia
sido envenenada por cianureto, provavelmente ingerido com algum tipo de bebida.
A vítima era um policial aposentado chamado João Madeira, que já fora
também conhecido por Rebouças, Trancoso e Ramalho e que atualmente vivia de pequenos
expedientes.
As coisas no número 341 da Rua da Misericórdia continuaram funcionando
normalmente.
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