segunda-feira, 31 de agosto de 2020




            AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

 CAPÍTULO 9 - A MARATONA
            (continuação)

A recessão acontecida nos Estados Unidos em 1929 abalou as estruturas do país não apenas no que diz respeito ao lado econômico, mas também no tocante ao lado moral.

À medida que a miséria batia às suas portas, homens e mulheres literalmente se prostituíam, vendendo até a própria alma, fosse isso possível, para sustentarem suas famílias.

Com a proximidade do inverno, a situação se tornava mais desesperadora, pois a necessidade de lenha, carvão ou óleo para a calefação doméstica era quase tão premente quanto a da alimentação. As pessoas andavam à procura de um milagre que lhes proporcionasse algum dinheiro, por pouco que fosse, para ajudar na sua sobrevivência.

Esta súbita pobreza da população fez com que alguns espertalhões imaginassem um sem número de truques para lesar o cidadão em proveito próprio, desde rifas onde os objetos premiados não eram entregues e de trabalhos exaustivos que eram executados em troca de uma parca remuneração, até promessas de empregos inexistentes em outras localidades à custa do pagamento de alguma caução antecipada.

Os empresários artísticos menos escrupulosos imaginavam diversos projetos maquiavélicos para se aproveitarem desta situação de penúria. Entre os projetos postos em prática, havia um, em especial, que se utilizava da crescente popularidade do swing, pois a música serviria de pano de fundo para a promoção de concursos de dança, onde os vencedores seriam premiados com polpudas importâncias, que poderiam chegar a centenas de dólares em dinheiro e contratos de experiência em estúdios de cinema. Esta prática não era nova, pois remontava ao início do século, mas naquela época as condições eram menos escabrosas e mais humanas.

Estes empresários tinham como modelo maratonas de dança como a realizada em Cleveland – Ohio, no ano de 1923, quando quatro casais, entre dezenas de inscritos, bateram o recorde de cinqüenta e duas horas e onze minutos ininterruptos dançando ao som de orquestras de salão.

A grande vencedora da jornada havia sido uma jovem chamada Bridget Collins, após dançar com cinco cavalheiros diferentes, que não aguentaram até o fim e simplesmente desistiram no meio da competição.

Bridget desmaiou depois que o juiz levantou seu braço como se faz com um vencedor numa luta de boxe e decretou o final do concurso. Desacordada, foi parar num hospital da cidade, com cinco quilos a menos e os tornozelos tão inchados que tinham quase duplicado de tamanho.

Mas o país vivia naquele momento uma época de vacas gordas, e a maratona de dança, à parte seu aspecto bizarro, não causou muita celeuma, sendo considerada apenas como mais uma diversão social de mau gosto. Além do mais, o concurso pagou uma boa quantia aos finalistas, o que possibilitou à debilitada Bridget uma internação hospitalar de primeira classe para se recuperar dos estragos sofridos e, de sobra, algum dinheiro no bolso.

Dez anos depois, no entanto, a situação era caótica sob o ponto de vista econômico e humilhante sob o ponto de vista ético.

Nunca se soube se Bridget Collins voltou algum dia a encarar este baile dos vampiros, mas centenas de outras Bridgets se inscreveram em dezenas de concursos que se realizaram em Nova York e em outras cidades em busca de celebridade, do estrelato e até de alguma coisa para forrar o estômago.

As competições eram as mais draconianas possíveis, e algumas chegavam a durar até quarenta dias ininterruptos – cerca de mil horas! – com os casais se abraçando no enorme tablado de madeira e se movendo como autômatos, quase sem direito a descanso.

A maioria era forçada a desistir em poucos dias devido à estafa física e mental, com o sistema nervoso abalado pela responsabilidade, pelo rigor do regulamento e pelas drogas que eles tomavam para se permitirem ir além das suas forças.

As paradas esporádicas eram controladas pelos juízes e somente poderiam ser feitas em virtude de algum atendimento médico, para uma rápida ida ao banheiro ou cerca de dez minutos a cada hora para repousar. Os casais comiam sanduíches e bebiam água enquanto dançavam, e os pares dormitavam em turnos, um encostado no outro.

Não havia nada de sensual ou romântico em ver um casal se enlaçando em tais condições, pois eles não tomavam um banho regular e praticamente não escovavam os dentes, com a barba crescendo nos homens e os cabelos se desgrenhando nas mulheres, todos com a face pálida em frangalhos.

A desclassificação poderia acontecer com a simples desistência do casal ou mesmo a pedido da platéia ululante, caso ela não se conformasse em ver pares imóveis apenas se escorando para não cair, isto é, o conceito “vox-populi”, utilizado nas arenas romanas, era estimulado pelos organizadores, que não pestanejavam em eliminar os casais que estivessem em má cotação no gosto do público.

A exclusão também podia ser relacionada com as chamadas “rodas de desclassificação”, quando os casais tinham que dançar enfileirados, como numa dança de quadrilha, e saltar enquanto dançavam, de acordo com as instruções recebidas do organizador, ocasião em que aqueles que falhavam eram sumariamente eliminados.

Enquanto isso, o mestre de cerimônias, tal qual um locutor de rodeios, instigava os pares, ao mesmo tempo em que os humilhava com expressões nem um pouco corteses.

Alguns casais conseguiam ganhar algum dinheiro extra por carregarem nos ombros placas com propaganda de restaurantes populares, escritórios de compra e venda de ouro ou agências de emprego. As não raras quedas no tablado de casais portando essas placas causavam diversos ferimentos neles e nos outros, tendo como fundo o gargalhar da platéia, composta por um bando de miseráveis dentro de um antro de miseráveis rindo da miséria de outros tantos miseráveis.

É inacreditável que isto acontecesse no coração de Nova York, cuja população, anestesiada pela crise dominante, a tudo assistia impassível como se não fizesse parte do problema. Era um forte exemplo da degradação que representava o desabamento moral de uma sociedade, além de divulgar o lado pobre da música, pois orquestras de menor qualidade se sujeitavam a tocar um arremedo de swing a preço de banana, para servir de background à pantomima.

Ao final do espetáculo, era comum os organizadores fugirem com a renda da bilheteria e com o dinheiro arrecadado através dos eventuais patrocinadores, deixando Bridgets, Susans, Philips e outros desafortunados a ver navios, sem condições nem mesmo para recuperarem as forças depauperadas.

Este show de horrores não durou muito tempo, pois as pessoas logo perceberam que tudo não passava de uma grande farsa. A própria lei começou a tomar as devidas precauções para impedir a realização das maratonas de dança, e com o passar do tempo esta diversão macabra acabou caindo em desuso.

Em 1969, o cineasta Sidney Pollack dirigiu um filme baseado no livro de Horace McCoy chamado “They shoot horses, don’t they?” (Eles matam cavalos, não matam?), que no Brasil recebeu o título de “A Noite dos Desesperados”, retratando o mais fielmente possível esta época onde se fazia de tudo para ganhar dinheiro.

O filme foi estrelado por Jane Fonda, Gig Young, Susannah York e Michael Sarrazin, e conseguiu levar para a tela toda a angústia da sociedade americana na época da recessão, onde às vezes uma maratona de dança parecia ser a única saída para ganhar algum dinheiro, e a exaustão física e mental era apenas um dos inúmeros obstáculos a serem vencidos.


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