AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 9 - A MARATONA
(continuação)
A recessão acontecida nos Estados Unidos em 1929 abalou as estruturas do país não apenas no que diz respeito ao lado econômico, mas também no tocante ao lado moral.
À medida que a
miséria batia às suas portas, homens e mulheres literalmente se prostituíam,
vendendo até a própria alma, fosse isso possível, para sustentarem suas
famílias.
Com a proximidade
do inverno, a situação se tornava mais desesperadora, pois a necessidade de
lenha, carvão ou óleo para a calefação doméstica era quase tão premente quanto
a da alimentação. As pessoas andavam à procura de um milagre que lhes
proporcionasse algum dinheiro, por pouco que fosse, para ajudar na sua
sobrevivência.
Esta súbita
pobreza da população fez com que alguns espertalhões imaginassem um sem número
de truques para lesar o cidadão em proveito próprio, desde rifas onde os
objetos premiados não eram entregues e de trabalhos exaustivos que eram
executados em troca de uma parca remuneração, até promessas de empregos
inexistentes em outras localidades à custa do pagamento de alguma caução
antecipada.
Os empresários
artísticos menos escrupulosos imaginavam diversos projetos maquiavélicos para
se aproveitarem desta situação de penúria. Entre os projetos postos em prática,
havia um, em especial, que se utilizava da crescente popularidade do swing, pois a música serviria de pano de
fundo para a promoção de concursos de dança, onde os vencedores seriam
premiados com polpudas importâncias, que poderiam chegar a centenas de dólares
em dinheiro e contratos de experiência em estúdios de cinema. Esta prática não
era nova, pois remontava ao início do século, mas naquela época as condições
eram menos escabrosas e mais humanas.
Estes empresários
tinham como modelo maratonas de dança como a realizada em Cleveland – Ohio, no
ano de 1923, quando quatro casais, entre dezenas de inscritos, bateram o
recorde de cinqüenta e duas horas e onze minutos ininterruptos dançando ao som
de orquestras de salão.
A grande vencedora
da jornada havia sido uma jovem chamada Bridget Collins, após dançar com cinco
cavalheiros diferentes, que não aguentaram até o fim e simplesmente desistiram
no meio da competição.
Bridget desmaiou
depois que o juiz levantou seu braço como se faz com um vencedor numa luta de
boxe e decretou o final do concurso. Desacordada, foi parar num hospital da
cidade, com cinco quilos a menos e os tornozelos tão inchados que tinham quase
duplicado de tamanho.
Mas o país vivia
naquele momento uma época de vacas gordas, e a maratona de dança, à parte seu
aspecto bizarro, não causou muita celeuma, sendo considerada apenas como mais
uma diversão social de mau gosto. Além do mais, o concurso pagou uma boa
quantia aos finalistas, o que possibilitou à debilitada Bridget uma internação
hospitalar de primeira classe para se recuperar dos estragos sofridos e, de
sobra, algum dinheiro no bolso.
Dez anos depois,
no entanto, a situação era caótica sob o ponto de vista econômico e humilhante
sob o ponto de vista ético.
Nunca se soube se
Bridget Collins voltou algum dia a encarar este baile dos vampiros, mas
centenas de outras Bridgets se inscreveram em dezenas de concursos que se
realizaram em Nova York e em outras cidades em busca de celebridade, do
estrelato e até de alguma coisa para forrar o estômago.
As competições
eram as mais draconianas possíveis, e algumas chegavam a durar até quarenta
dias ininterruptos – cerca de mil horas! – com os casais se abraçando no enorme
tablado de madeira e se movendo como autômatos, quase sem direito a descanso.
A maioria era
forçada a desistir em poucos dias devido à estafa física e mental, com o
sistema nervoso abalado pela responsabilidade, pelo rigor do regulamento e
pelas drogas que eles tomavam para se permitirem ir além das suas forças.
As paradas
esporádicas eram controladas pelos juízes e somente poderiam ser feitas em
virtude de algum atendimento médico, para uma rápida ida ao banheiro ou cerca
de dez minutos a cada hora para repousar. Os casais comiam sanduíches e bebiam
água enquanto dançavam, e os pares dormitavam em turnos, um encostado no outro.
Não havia nada de
sensual ou romântico em ver um casal se enlaçando em tais condições, pois eles
não tomavam um banho regular e praticamente não escovavam os dentes, com a
barba crescendo nos homens e os cabelos se desgrenhando nas mulheres, todos com
a face pálida em frangalhos.
A desclassificação
poderia acontecer com a simples desistência do casal ou mesmo a pedido da
platéia ululante, caso ela não se conformasse em ver pares imóveis apenas se
escorando para não cair, isto é, o conceito “vox-populi”, utilizado nas arenas romanas, era estimulado pelos
organizadores, que não pestanejavam em eliminar os casais que estivessem em má
cotação no gosto do público.
A exclusão também
podia ser relacionada com as chamadas “rodas de desclassificação”, quando os
casais tinham que dançar enfileirados, como numa dança de quadrilha, e saltar
enquanto dançavam, de acordo com as instruções recebidas do organizador,
ocasião em que aqueles que falhavam eram sumariamente eliminados.
Enquanto isso, o
mestre de cerimônias, tal qual um locutor de rodeios, instigava os pares, ao
mesmo tempo em que os humilhava com expressões nem um pouco corteses.
Alguns casais
conseguiam ganhar algum dinheiro extra por carregarem nos ombros placas com
propaganda de restaurantes populares, escritórios de compra e venda de ouro ou
agências de emprego. As não raras quedas no tablado de casais portando essas
placas causavam diversos ferimentos neles e nos outros, tendo como fundo o
gargalhar da platéia, composta por um bando de miseráveis dentro de um antro de
miseráveis rindo da miséria de outros tantos miseráveis.
É inacreditável
que isto acontecesse no coração de Nova York, cuja população, anestesiada pela
crise dominante, a tudo assistia impassível como se não fizesse parte do
problema. Era um forte exemplo da degradação que representava o desabamento
moral de uma sociedade, além de divulgar o lado pobre da música, pois
orquestras de menor qualidade se sujeitavam a tocar um arremedo de swing a preço de banana, para servir de background
à pantomima.
Ao final do espetáculo,
era comum os organizadores fugirem com a renda da bilheteria e com o dinheiro
arrecadado através dos eventuais patrocinadores, deixando Bridgets, Susans,
Philips e outros desafortunados a ver navios, sem condições nem mesmo para
recuperarem as forças depauperadas.
Este show de
horrores não durou muito tempo, pois as pessoas logo perceberam que tudo não
passava de uma grande farsa. A própria lei começou a tomar as devidas
precauções para impedir a realização das maratonas de dança, e com o passar do
tempo esta diversão macabra acabou caindo em desuso.
Em 1969, o
cineasta Sidney Pollack dirigiu um filme baseado no livro de Horace McCoy
chamado “They shoot horses, don’t they?” (Eles matam cavalos,
não matam?), que no Brasil recebeu o título de “A Noite dos Desesperados”, retratando o mais fielmente possível
esta época onde se fazia de tudo para ganhar dinheiro.
O filme foi
estrelado por Jane Fonda, Gig Young, Susannah York e Michael Sarrazin, e
conseguiu levar para a tela toda a angústia da sociedade americana na época da
recessão, onde às vezes uma maratona de dança parecia ser a única saída para
ganhar algum dinheiro, e a exaustão física e mental era apenas um dos inúmeros
obstáculos a serem vencidos.
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