sábado, 5 de setembro de 2020

 




           AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 10 - CERTO DIA DE JANEIRO

O dia 16 de janeiro de 1938 foi muito significativo para o swing e seus admiradores. Dois eventos inesquecíveis marcaram a data, começando no início da noite e atravessando a madrugada do dia seguinte, com muita música e muito “frisson” para o público novaiorquino que se identificava com o jazz e com as big bands.

Foi neste dia que a orquestra de Benny Goodman rompeu todas as barreiras artísticas e se apresentou no famoso Teatro Carnegie Hall, onde realizou o primeiro concerto de swing-jazz, dentro de um espaço que sempre fora tradicionalmente reservado para apresentações de música erudita, cantores líricos e espetáculos teatrais. No mesmo dia, horas mais tarde, o Savoy Ballroom foi o palco de uma exibição de gigantes – o tira-teima entre Count Basie e Chick Webb – num confronto musical que levou os frequentadores ao delírio.

O show do Carnegie Hall nasceu de uma jogada publicitária de um agente de Goodman chamado Wynn Nathanson e teve o respaldo do empresário teatral Geraldo Groode, que estava buscando ingressar no ramo da música popular. Nathanson se questionava por que razão o local não poderia abrigar novas experiências além das apresentações eruditas, e decidiu lutar por uma mudança. Chamou Groode para uma conversa, e como a ideia lhe pareceu comercialmente boa, Groode começou a alinhavar os pontos.

Mesmo com a mudança do tipo de música a ser apresentada não haveria qualquer problema com a organização do teatro, pois lá tudo era extremamente profissional. A estrutura do Carnegie Hall contava com uma equipe muito bem treinada e era perfeita em todos os outros detalhes – bilheteria, camarins, equipamento de som e luz e apoio logístico. Também não havia o que temer com o sucesso musical, pois a orquestra de Benny Goodman era também perfeita nos mínimos detalhes, sempre bem ensaiada e pronta para detonar em qualquer situação de emergência.

O xis da questão era o ineditismo da proposta. Pela primeira vez um produtor estava ousando propor uma apresentação de jazz – música própria para um salão de danças – em um salão de concerto.

A direção do Carnegie Hall pesou os prós e os contras e não viu qualquer problema maior, desde que não surgisse algum detalhe complicador, como superlotação ou o comportamento inconveniente do público, habituado com liberalidades do jazz que o teatro não concedia. A produção se comprometeu a tomar todos os cuidados para evitar qualquer eventual transtorno.

Os produtores também não viam qualquer empecilho, desde que Goodman não tivesse que preparar um repertório especial para o show, que houvesse alguma exigência do Teatro, como a participação de algum corpo de balé ou a inclusão de efeitos coreográficos ou cenográficos, ou ainda que nenhum artista erudito quisesse pegar carona num evento puramente jazzístico.

Benny Goodman foi convidado e aceitou o desafio com serenidade e otimismo. Afinal, o dinheiro era bom, e a possibilidade de sucesso era enorme.

O que falou mais alto, no entanto, foi a vaidade do maestro. Numa cidade onde os heróis do momento eram Duke Ellington e Count Basie, o seu nome é que fora o indicado para levar uma big band ao Teatro Carnegie Hall, o lugar dos sonhos de todo artista, onde seria realizada uma apresentação toda especial, feita em homenagem à história do jazz.

Em poucos dias Goodman montou o repertório e revisou as partituras, utilizando os cadernos musicais de Fletcher Henderson, Jim Mundy e Edgar Sampson, cujas músicas já haviam se consagrado na época ao som da sua orquestra.

Goodman tinha algumas dúvidas sobre a seqüência a ser observada e pediu a ajuda de Henderson, que às vezes exercia o papel de conselheiro para outros músicos. Apesar do pouco tempo disponível para fazer experiências, Goodman foi convencido por ele a incluir uma melodia que ainda não fazia parte dos seus shows – “Blue Room” (Richard Rodgers) – e a refazer algumas partes de “Stompin’ At The Savoy”, um dos hits preferidos da banda, cujo coautor, Edgar Sampson, também foi chamado para colaborar com algumas ideias.

O crítico e coprodutor Irving Kolodin teve a ideia de batizar o show com o nome “Vinte Anos de Jazz”, tomando por base o crescimento do jazz desde o final dos anos 1910 até aquele momento e levando em consideração o trabalho desenvolvido no eixo Chicago-Nova York pela Original Jass Band, por Bix Beiderbecke, Ted Lewis, Louis Armstrong, Duke Ellington e outros.

A ideia foi aceita, mas na definição do programa, ficou claro que qualquer menção a estes artistas seria meramente subjetiva, pois não haveria tempo suficiente para que fossem preparados arranjos que pudessem homenageá-los dando ênfase às peculiaridades de cada um.

O máximo que a direção musical se permitiria fazer seria aceitar a participação, em alguns sets, de certos músicos que não integravam oficialmente a orquestra de Goodman, na condição de artistas especialmente convidados.

Assim, “Vinte Anos de Jazz” se resumiria ao swing, deixando o jazz tradicional de lado, interpretado por dois grupos distintos, ambos conduzidos por Benny Goodman e seu clarinete: a big band, com um estilo que se fizera nacionalmente famoso através do programa radiofônico Let’s Dance, e o quarteto formado por ele, Lionel Hampton no vibrafone, Teddy Wilson ao piano e Gene Krupa na bateria, que ocasionalmente se transformava em trio, sem a presença de Hampton.

As formações de trio e quarteto na execução do swing eram relativamente inusitadas, pois o público estava habituado a ouvir a forte sonoridade das suas melodias favoritas na interpretação de orquestras retumbantes, o que facilitava a dança e mantinha uma aparente coerência com o espírito da música.

Nas mãos de Benny Goodman, porém, o pequeno conjunto adquirira uma faceta interessante e digna de marca, pois conseguia associar uma forte tendência do jazz mais convencional ao moderno improviso individual, tudo isso sem abdicar do swing.

De fato, os solos de Goodman, Hampton e Wilson, tendo como fundo a bateria pesada de Gene Krupa, que vez por outra também fazia a sua exibição individual, criaram uma marca registrada que pouca gente teve a coragem – ou a competência – de imitar.

A força e o vigor da interpretação, no entanto, residiam no som da orquestra completa, que servia como apoio harmônico e melódico às intervenções perfeitas do clarinetista, às vezes alegres e brejeiras como devia ser o jazz, outras vezes solenes e comportadas como sugeria a sua formação acadêmica.

O único provável problema para a realização do show poderia ter sido a divulgação, mas isto foi contornado com maestria pelos organizadores, que em menos de quinze dias colocaram o vibrante público do swing a par do grande espetáculo, usando como material de propaganda a própria fachada do teatro, além de homens carregando cartazes nas costas, garotos distribuindo folhetos, anúncios nos principais jornais da cidade e comentários boca-a-boca entre os apreciadores.

Depois dessa noite, Benny Goodman voltaria a se apresentar no Carnegie Hall por mais vinte e duas vezes nos quarenta e quatro anos seguintes – seis delas executando música erudita – sendo sua última apresentação feita em 15 de junho de 1982, durante o Kool Jazz Festival.

 

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