sábado, 17 de outubro de 2020

 


AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 16 - A PROIBIÇÃO

Quando em janeiro de 1920 o Congresso americano fez com que a Emenda 18 da Constituição do país começasse a ser aplicada, ele estava criando uma lei que contrariava uma outra lei, não escrita mas naturalmente obedecida pelos cidadãos americanos por uma questão de tradição e hábito: a “lei do copo”.

A nova lei simplesmente proibia a fabricação, o consumo e a posse de bebidas alcoólicas, e apesar de decidida em janeiro, foi oficialmente posta em prática apenas no dia 16 de julho, depois de acirradas discussões entre os congressistas que pregavam a austeridade, todos republicanos, e uma minoria democrata, que apelava para as liberdades individuais, tentando com isso demover o Congresso da aplicação prática da medida.

Beber fazia parte da cultura americana, como de resto faz parte da cultura de quase todo mundo, e a proibição apenas aguçou a vontade da população tomar umas e outras a mais, fazendo aumentar o número de beberrões. Assim como era impossível fazer o povo americano deixar de respirar, também era impossível fazer com que ele deixasse de beber, principalmente por meio de um decreto.

Além do mais, havia outra questão importante a ser levada em conta: as indústrias de bebidas, como qualquer corporação forte, empregava milhões de pessoas, e todos – fabricantes e empregados – viviam à custa do prazer que proporcionavam a outros milhões de consumidores.

O governo podia até abrir mão dos bilhões de dólares anuais que a comercialização de bebidas rendia ao tesouro nacional através do recolhimento de taxas e impostos, mas os hotéis, os restaurantes, os salões de dança, os armazéns, os botequins, as empresas transportadoras, os promotores de festas e os bebedores em geral ficaram muito contrariados com a ideia. Assim, no rastro deste flagrante prejuízo, havia um enorme número de pessoas descontentes e dispostas a descumprir a lei.

Qualquer que tenha sido a intenção dos legisladores, o resultado prático da proibição foi, na verdade, um enorme jogo de cena, onde os guardiões da lei faziam de conta que vigiavam o seu cumprimento, e a população, em meio a uma ou outra detenção, fingia que acreditava que a coisa fosse séria.

O preço que a nação pagou por esta demonstração de força foi o aparecimento de incontáveis bares clandestinos. Estima-se que apenas em Nova York tenham sido abertos cerca de cinquenta mil bares dos diversos tamanhos e qualificações, e alguns pesquisadores garantem que este número possa ter ultrapassado a casa dos cem mil.

Os novaiorquinos chamavam estes bares clandestinos pelo nome de “speakeasy”, que significa algo como “lugar onde se deve falar baixo” (e, é lógico, beber comportadamente, sem chamar a atenção).

Havia uma frase consagrada na cidade que ilustrava muito bem o deboche e o descrédito com que o povo via o cumprimento da Lei Seca: “Se você quiser se embriagar em Nova York, basta caminhar uns dez metros em qualquer direção”. A frase deixa mais que evidente a quantidade de “speakeasies que o bebedor tinha à sua escolha.

Os “speakeasies” traziam no seu cardápio todo tipo de bebida ilegal, regada por uma boa música que era tocada por pequenos grupos ou até grandes orquestras, dependendo do tamanho do local. Boa parte deles, porém, não oferecia apenas a bebida, mas incluía outros entretenimentos claramente ilícitos, como a prostituição, o jogo de azar e as drogas.

Esta ilicitude acabou sendo um dos motivos do crescimento anormal desses bares clandestinos e aguçou a vontade de se embriagar – se beber já era naturalmente gostoso, que dirá beber driblando uma proibição federal, em ambientes agradáveis, cercado por lindas garçonetes trajando saias diminutas e usando um sorriso de anúncio de dentifrício, com muito dixieland, chicago, charleston ou swing utilizado como música de fundo? E, supremo prazer, divertir-se sabendo estar cometendo um pecadilho contra a moral estabelecida!

Como tudo o que é proibido parece ser mais gostoso, a Prohibition veio adicionar este pequeno sabor ao charmoso uísque “on the rocks”, à borbulhante champanhe ou à popular caneca de cerveja gelada e cheia de espuma.

Muitos locais funcionavam abertamente sob a fachada de respeitáveis restaurantes e lanchonetes, fazendo de conta que serviam sucos e refrigerantes, porém misturando gim ou uísque na soda limonada ou na Coca-Cola. Outros, mais e mais abrangentes, faziam o seu negócio no subsolo, protegidos por um alçapão que era levantado sob o comando de um “abre-te Sésamo” em forma de senha, permitindo ao usuário descer para um porão mal ventilado e se embriagar à vontade sem ter que mascarar a sua bebida.

Havia estabelecimentos que não passavam de galpões disfarçados de depósitos, garages ou oficinas, para onde convergiam caixas de uísque de baixa qualidade e tonéis de cerveja caseira, tudo vendido a um alto preço que era pago sem discussão por uma burguesia desejosa apenas de muita diversão e esbórnia.

Por conta da diversão, a música e o jogo clandestino também faziam parte do cenário, e os proprietários ou gerentes eram comandados nas sombras por gângsters que davam proteção e garantia ao negócio e “trabalhavam” nos bastidores para que as autoridades fizessem ouvidos moucos e olhos de mercador, daí nascendo outro enorme jogo de faz-de-conta.

Afinal, era inacreditável que dentro dos bares subterrâneos as orquestras não poupassem o seu fôlego, tocando a todo vapor e fazendo a música estranhamente fluir das entranhas da terra sem que isso despertasse a atenção da lei...

A Lei Seca foi mantida por treze anos na esperança de que pudesse reduzir a criminalidade, o vício e a pobreza, e desta forma melhorar a qualidade de vida do povo americano. Só que durante a sua vigência, a lei provou ter sido um enorme equívoco, pois causou o mais retumbante fracasso. Nunca o povo bebeu tanto, e nunca as mortes causadas pelo alcoolismo alcançaram índices tão alarmantes. O cidadão americano, que possuía uma índole patriótica e tinha a vocação de ser um fiel cumpridor de leis, tornou-se desobediente e rebelde, ou seja, na prática, a proibição transformou homens honrados em reles criminosos perseguidos pela polícia.

O mercado negro de bebidas movimentava aqueles bilhões que o governo desprezara e o crime organizado prosperava nas mãos das “famílias” que aproveitavam aquele bom momento. As quadrilhas dos gângsters brigavam entre si pelos melhores pontos, ao mesmo tempo em que se uniam contra o inimigo comum – a Polícia Federal ou algum senador mais exacerbado.

Em 1908 havia sido criado o Bureau of Investigation, com a finalidade de investigar e punir as ações fora da lei, mas ele não tinha a cobertura de uma lei federal e se limitou a colaborar com algumas investigações de caráter especial. Isso durou até julho de 1932, quando a necessidade de se intensificar os rigores da lei fez com que o Bureau fosse promovido a uma entidade federal, mudando o nome para Federal Bureau of Investigation – FBI, mas isto veio a ocorrer apenas em 1935. Só que, quando veio a mudança, já fazia dois anos que a Lei Seca havia sido abolida.

O presidente Franklin Delano Roosevelt pressionou pessoalmente o Congresso americano e o Secretário da Justiça, Homer Cummings, para que fosse aumentada a área de atuação da Polícia Federal a fim de que ela tivesse mais poderes, pois a situação havia se tornado especialmente complicada depois da Grande Depressão de 1929, quando os tempos difíceis fizeram aumentar a criminalidade.

Dois acontecimentos vieram dar razão ao presidente e colocar a opinião pública, antes indecisa, a seu lado: o massacre de uma família de nativos da tribo Osage em Oklahoma por questões de terra e petróleo, e o rapto seguido de assassinato do bebê Charles A. Lindbergh Junior, filho de um herói americano – aquele mesmo do lindy hop (ver Capítulo 8) – fato que movimentou inclusive a imprensa internacional.

Nenhum destes crimes, porém, parecia ter qualquer relação com a proibição da bebida, e os parlamentares começaram a perceber que realmente existiam coisas mais importantes para que eles se preocupassem do que simplesmente fiscalizar bêbados.

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