segunda-feira, 5 de outubro de 2020

 


AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 14 - A MÚSICA CHINESA (FINAL)

Seu nome era John Birks Gillespie, mas era conhecido como Dizzy, e tinha realmente substituído o famoso Roy Eldridge na orquestra de Teddy Hill. Na entrevista com Cab, ele falou com empolgação sobre a sua primeira gravação com Hill – “King Porter Stomp”, de Jelly Roll Morton – que estava brilhando nas paradas (na verdade, não estava).

Ele sabia ler partituras e viajara para a Europa com Teddy Hill. Fez questão de mencionar “um pequeno trabalho” que fizera com os All Stars de Lionel Hampton, mas deixou em branco o motivo da sua saída tanto de uma como da outra orquestra.

Calloway ouviu tudo sem prestar muita atenção e fez poucas perguntas. Ele estava com o pensamento em outro lugar.

Parecia que a Providência estava lhe mandando um recado.

Contratar Dizzy Gillespie significava ter no seu grupo um trompetista com relativa experiência e a oportunidade de se livrar de Schwenck. Além disso, poderia finalmente alinhar o seu naipe de trompetes com Lammar Wright, Mario Bauzá, Doc Cheatham e Shad Collins com alguém que tinha facilidade para ler partituras.

Marcaram um teste para dali a dois dias, depois que Cab conversasse com Cheatham. Aí, Gillespie seria confrontado com o resto da orquestra e mostraria seus dotes de trompetista.

Por enquanto era só. Gillespie foi despachado cheio de esperanças e Calloway retomou o seu ensaio, com um punhado de dúvidas na cabeça.

Ele, que sempre fora um músico tão equilibrado embora aparentasse o contrário, gostaria muito de saber a origem do apelido “Dizzy” (“Pirado”, em português), nome pelo qual seu provável futuro trompetista atendia.

 

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A contratação de Dizzy não fora uma aventura.

O trompetista correspondeu às exigências do maestro e pouco tempo depois, com a saída do experiente Doc Cheatham, acabou se transformando no trompete-líder da orquestra.

Gillespie se adaptou rapidamente ao clima festivo da banda. Ele se divertia muitíssimo com a performance de palco de Cab Calloway e ficava fascinado com o colorido do show, coisa que ele não vira com Teddy Hill ou com outras big bands que pipocavam no Harlem, nem mesmo com o extrovertido e desinibido Lionel Hampton.

É claro que existiam sonoras diferenças entre as orquestras “sérias” de Duke Ellington e Count Basie e o espetáculo teatral que Calloway oferecia, mas o público gostava das duas coisas. Talvez os críticos preferissem Ellington e o seu blues sinfônico, mas ele próprio, Dizzy, se sentia mais à vontade com uma banda cujo líder tinha a mesma visão de palco e de espetáculo que ele.

No entanto, por incrível que possa parecer, esta semelhança na personalidade não o aproximava de Cab, pelo contrário, parecia afastar um do outro.

Na concepção de Dizzy, o que Cab sentia era ciúme, pois desde que ele começara a operar suas gracinhas e a causar “frisson” no público, o maestro não se cansava de repreendê-lo.

Por último, Cab começou a implicar com os seus solos por achar que eles estavam ficando muito complicados para o estilo da orquestra. Ele comentava com os amigos mais chegados que Gillespie era um trompetista de grande qualidade, mas que tocava uma música que se afastava de tudo aquilo que ele, Cab, considerava jazz.

Quando se dirigia a Gillespie, Cab era ainda mais direto e contundente, e pedia para que ele deixasse de tocar aquela maldita “música chinesa” (depois de sair da orquestra de Calloway, Gillespie iria explorar a sua “música chinesa” com diversas outras orquestras até que se encontrou com Charlie Parker no grupo de Earl “Fatha” Hines e transformou a sua “música chinesa” no bebop).

Dizzy não se importava com o mau humor de Cab. Aos vinte e poucos anos, ele estava apenas se iniciando no mundo da música, e sabia que aquela era apenas uma etapa da sua vida. Ele buscava um estilo mais moderno, e jamais limitaria o seu jazz a um swing puramente dançante.

No entanto, a orquestra de Cab Calloway iria representar para Dizzy Gillespie mais do que uma simples passagem. Foi lá que ele conheceu e se tornou amigo do trompetista cubano Mario Bauzá, que se tornaria um parceiro de várias décadas e iniciaria Dizzy no jazz latino.

Bauzá era um pouco de tudo, clarinetista, trompetista, saxofonista, arranjador, compositor e posteriormente bandleader, e ajudou Gillespie a suportar as impertinências e implicâncias de Cab Calloway.

Talvez uma grande transformação do jazz – a entrada triunfal na era bebop – pudesse ter começado com Cab Calloway se ele não fosse tão cabeça dura. A sua orquestra fazia um jazz-espetáculo muito propício a novidades e invenções, e poderia ter ido além, registrando seu nome na história como uma orquestra realmente diferenciada. Se Calloway tivesse tido a boa vontade de aceitar Gillespie do jeito que ele era, eles poderiam ter feito uma parceria maravilhosa e histórica.

Calloway cantava de um jeito engraçado e improvisava as letras, usando um bordão que o público adorava – “Hi-De-Hi-Hi-De-Ho”, sua marca registrada – e criando paródias interessantes. Também era mestre no “scat singing, e conseguia encenar uma comédia a cada música executada.

Gillespie não era diferente. Não cantava nem fazia paródias, mas interpretava a música com gestos curtos e expressões faciais que levavam o público ao delírio e não raro às gargalhadas.

Mas Calloway não gostava desta concorrência e às vezes tinha a impressão de que os gestos e as caretas de Dizzy eram dirigidos a ele.

Estava claro que as coisas não iriam terminar bem entre os dois.

 

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A orquestra estava infernal naquela noite e Cab estava particularmente brilhante.

Vestindo um terno tamanho família num azul-claro berrante (se é que um azul-claro pode ser berrante), um chapéu que teria ficado excelente na cabeça de um dos três – ou quatro – mosqueteiros, um lenço cor-de-abóbora empapuçado à guisa de gravata e sapatos brancos com desenhos em marrom apropriados para o sapateado, ele exibia seus passos de dança, seu largo sorriso e sua voz divertida num dos seus “Hi-De-Ho’s” tradicionais.

O show estava chegando ao final, e o público aplaudia e pedia bis, enquanto Leroy Maxey ficava rufando na bateria.

Calloway se virou em direção ao público para agradecer a vibração e a ovação quando sente uma, duas, e depois três pancadas secas nas costas, ao mesmo tempo em que ouvia um baque surdo de alguma coisa caindo no assoalho de madeira do palco.

Ainda sorrindo ele olha de soslaio para o chão e vê uma ou duas bolas de papel umedecidas, para ganhar peso e consistência, do tamanho de uma bola de tênis. Algum dos seus músicos estava tentando fazê-lo de palhaço em frente ao seu público e ele imaginava quem seria o sujeito.

Calloway resolveu tocar dois “bis” insistentemente pedidos, e procurou realizar o melhor desempenho da sua vida. Na verdade, sua vontade era a de arrebentar com o engraçadinho ali mesmo, bem em frente ao seu público, mas o profissionalismo falou mais alto.

Ele cantou “Peck-A-Doodle-Do” e “Reefer Man” com a maior descontração e muita dignidade, fez o seu habitual gran finale, agradeceu em nome dos músicos e esperou a cortina fechar.

Cortina fechada, enquanto ele permanecia fazendo vênia e recebendo os aplausos da noite, os músicos iam se levantando e caminhando em direção aos camarins.

Somente alguns minutos depois é que Cab Calloway pode finalmente sair do palco e, com a cabeça em desordem, caminhar resolutamente em direção ao camarim dos músicos.

Ele iria ter uma conversa séria com aquele palhaço.

 

 

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