AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 14 - A MÚSICA CHINESA (FINAL)
Seu nome
era John Birks
Gillespie, mas era conhecido como Dizzy, e tinha realmente substituído o famoso
Roy Eldridge na orquestra de Teddy Hill. Na entrevista com Cab, ele falou com
empolgação sobre a sua primeira gravação com Hill – “King Porter Stomp”, de
Jelly Roll Morton – que estava brilhando nas paradas (na verdade, não estava).
Ele sabia ler
partituras e viajara para a Europa com Teddy Hill. Fez questão de mencionar “um
pequeno trabalho” que fizera com os All Stars de Lionel Hampton, mas deixou em
branco o motivo da sua saída tanto de uma como da outra orquestra.
Calloway ouviu
tudo sem prestar muita atenção e fez poucas perguntas. Ele estava com o
pensamento em outro lugar.
Parecia que a
Providência estava lhe mandando um recado.
Contratar Dizzy
Gillespie significava ter no seu grupo um trompetista com relativa experiência
e a oportunidade de se livrar de Schwenck. Além disso, poderia finalmente
alinhar o seu naipe de trompetes com Lammar Wright, Mario Bauzá, Doc Cheatham e
Shad Collins com alguém que tinha facilidade para ler partituras.
Marcaram um teste
para dali a dois dias, depois que Cab conversasse com Cheatham. Aí, Gillespie
seria confrontado com o resto da orquestra e mostraria seus dotes de
trompetista.
Por enquanto era
só. Gillespie foi despachado cheio de esperanças e Calloway retomou o seu
ensaio, com um punhado de dúvidas na cabeça.
Ele, que sempre
fora um músico tão equilibrado embora aparentasse o contrário, gostaria muito
de saber a origem do apelido “Dizzy”
(“Pirado”, em português), nome pelo
qual seu provável futuro trompetista atendia.
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A contratação de
Dizzy não fora uma aventura.
O trompetista
correspondeu às exigências do maestro e pouco tempo depois, com a saída do
experiente Doc Cheatham, acabou se transformando no trompete-líder da
orquestra.
Gillespie se
adaptou rapidamente ao clima festivo da banda. Ele se divertia muitíssimo com a
performance de palco de Cab Calloway e ficava fascinado com o colorido do show,
coisa que ele não vira com Teddy Hill ou com outras big bands que pipocavam no
Harlem, nem mesmo com o extrovertido e desinibido Lionel Hampton.
É claro que
existiam sonoras diferenças entre as orquestras “sérias” de Duke Ellington e
Count Basie e o espetáculo teatral que Calloway oferecia, mas o público gostava
das duas coisas. Talvez os críticos preferissem Ellington e o seu blues
sinfônico, mas ele próprio, Dizzy, se sentia mais à vontade com uma banda cujo
líder tinha a mesma visão de palco e de espetáculo que ele.
No entanto, por
incrível que possa parecer, esta semelhança na personalidade não o aproximava
de Cab, pelo contrário, parecia afastar um do outro.
Na concepção de
Dizzy, o que Cab sentia era ciúme, pois desde que ele começara a operar suas
gracinhas e a causar “frisson” no
público, o maestro não se cansava de repreendê-lo.
Por último, Cab
começou a implicar com os seus solos por achar que eles estavam ficando muito
complicados para o estilo da orquestra. Ele comentava com os amigos mais
chegados que Gillespie era um trompetista de grande qualidade, mas que tocava
uma música que se afastava de tudo aquilo que ele, Cab, considerava jazz.
Quando se dirigia
a Gillespie, Cab era ainda mais direto e contundente, e pedia para que ele
deixasse de tocar aquela maldita “música chinesa” (depois de sair da orquestra
de Calloway, Gillespie iria explorar a sua “música chinesa” com diversas outras
orquestras até que se encontrou com Charlie Parker no grupo de Earl “Fatha”
Hines e transformou a sua “música chinesa” no bebop).
Dizzy não se
importava com o mau humor de Cab. Aos vinte e poucos anos, ele estava apenas se
iniciando no mundo da música, e sabia que aquela era apenas uma etapa da sua
vida. Ele buscava um estilo mais moderno, e jamais limitaria o seu jazz a um swing puramente dançante.
No entanto, a
orquestra de Cab Calloway iria representar para Dizzy Gillespie mais do que uma
simples passagem. Foi lá que ele conheceu e se tornou amigo do trompetista
cubano Mario Bauzá, que se tornaria um parceiro de várias décadas e iniciaria
Dizzy no jazz latino.
Bauzá era um pouco
de tudo, clarinetista, trompetista, saxofonista, arranjador, compositor e
posteriormente bandleader, e ajudou
Gillespie a suportar as impertinências e implicâncias de Cab Calloway.
Talvez uma grande
transformação do jazz – a entrada triunfal na era bebop – pudesse ter começado com Cab Calloway se ele não fosse tão
cabeça dura. A sua orquestra fazia um jazz-espetáculo muito propício a
novidades e invenções, e poderia ter ido além, registrando seu nome na história
como uma orquestra realmente diferenciada. Se Calloway tivesse tido a boa
vontade de aceitar Gillespie do jeito que ele era, eles poderiam ter feito uma
parceria maravilhosa e histórica.
Calloway cantava
de um jeito engraçado e improvisava as letras, usando um bordão que o público
adorava – “Hi-De-Hi-Hi-De-Ho”, sua
marca registrada – e criando paródias interessantes. Também era mestre no “scat singing”, e conseguia encenar uma comédia a cada música executada.
Gillespie não era
diferente. Não cantava nem fazia paródias, mas interpretava a música com gestos
curtos e expressões faciais que levavam o público ao delírio e não raro às
gargalhadas.
Mas Calloway não
gostava desta concorrência e às vezes tinha a impressão de que os gestos e as
caretas de Dizzy eram dirigidos a ele.
Estava claro que
as coisas não iriam terminar bem entre os dois.
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A orquestra estava
infernal naquela noite e Cab estava particularmente brilhante.
Vestindo um terno
tamanho família num azul-claro berrante (se é que um azul-claro pode ser
berrante), um chapéu que teria ficado excelente na cabeça de um dos três – ou
quatro – mosqueteiros, um lenço cor-de-abóbora empapuçado à guisa de gravata e
sapatos brancos com desenhos em marrom apropriados para o sapateado, ele exibia
seus passos de dança, seu largo sorriso e sua voz divertida num dos seus “Hi-De-Ho’s” tradicionais.
O show estava
chegando ao final, e o público aplaudia e pedia bis, enquanto Leroy Maxey
ficava rufando na bateria.
Calloway se virou
em direção ao público para agradecer a vibração e a ovação quando sente uma,
duas, e depois três pancadas secas nas costas, ao mesmo tempo em que ouvia um
baque surdo de alguma coisa caindo no assoalho de madeira do palco.
Ainda sorrindo ele
olha de soslaio para o chão e vê uma ou duas bolas de papel umedecidas, para
ganhar peso e consistência, do tamanho de uma bola de tênis. Algum dos seus
músicos estava tentando fazê-lo de palhaço em frente ao seu público e ele
imaginava quem seria o sujeito.
Calloway resolveu
tocar dois “bis” insistentemente pedidos, e procurou realizar o melhor
desempenho da sua vida. Na verdade, sua vontade era a de arrebentar com o
engraçadinho ali mesmo, bem em frente ao seu público, mas o profissionalismo
falou mais alto.
Ele cantou “Peck-A-Doodle-Do”
e “Reefer Man” com a maior descontração e muita dignidade, fez o seu habitual gran finale,
agradeceu em nome dos músicos e esperou a cortina fechar.
Cortina fechada,
enquanto ele permanecia fazendo vênia e recebendo os aplausos da noite, os
músicos iam se levantando e caminhando em direção aos camarins.
Somente alguns
minutos depois é que Cab Calloway pode finalmente sair do palco e, com a cabeça
em desordem, caminhar resolutamente em direção ao camarim dos músicos.
Ele iria ter uma
conversa séria com aquele palhaço.
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