terça-feira, 11 de maio de 2021

 


I REMEMBER KAFKA  

(Augusto Pellegrini)

 

Estou mudando de residência.

A reentrância do tubo de esgoto onde eu mantinha o meu aprazível logradouro passou a não mais satisfazer as minhas necessidades depois que começaram a usar um detergente à base de amoníaco que me revolta as vísceras e me atormenta e me afugenta e me atordoa a cada banho tomado.

Somos, na verdade, criaturas indefesas à mercê dos homens que insistem e nos desbaratar à sua maneira – uma delas é degradando a natureza com seus agentes químicos e desengordurantes ou atacando desde as paredes do sumidouro aqui em baixo até a camada de ozônio lá em cima, abrindo um buraco para que o sol algum dia cozinhe a água do mar, derreta cidades inteiras e asse bilhões de humanos e vertebrados.

Só nós, seres indefesos, é que iremos sobreviver a mais outra catástrofe nos embrenhando pelas fendas e pelas cavernas, como temos feito nos últimos milênios.

Mas mesmo assim estou mudando de residência.

Achei um armário confortável, de madeira, onde guardam cereais e farinha, e não descobri nenhum vestígio de veneno – nós aprendemos que devemos sempre desconfiar de certas guloseimas que nos parecem saudáveis, mas escondem bioletrina, butóxico de piperonita, octibiciclohepteno-dicarboximido ou até coisas piores.

Aqui no meu novo cantinho eu me sinto confortável, e posso filosofar em relativa segurança.

A natureza que nos fez odiadas e repelidas é a mesma que exalta a beleza das joaninhas e das borboletas. Ela também nos fez pacíficas e inofensivas, pois não atacamos, não mordemos, não mutilamos nem devastamos o ecossistema e talvez por isso sejamos perseguidas como bichos danados.

Na busca constante pela verdade, numa troca de experiências com a vida e com outras criaturas, nós aprendemos no entanto que a discriminação da qual somos objeto não atinge somente a nós, mas a milhões de outros que como nós são caçados e esmigalhados numa devastação constante, como se fosse possível exterminar toda uma espécie de invertebrados.  

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Mas esses homens são mesmo uns tolos.

Basta a gente resolver usar as asas que a natureza nos deu, revoluteando no terraço ou na sala de jantar numa agradável noite de verão, para provocar uma sarabanda geral. Um grito de alerta aqui, um grito de nojo ali, mãos protegendo rosto e cabelo, e eu me divirto vendo belas mulheres desesperadas e homens maduros e sisudos correndo desbaratadamente para fugir do confronto ou procurando instrumentos de ataque e defesa – vassouras, espanadores e jornais enrolados.

Tão grandes e tão poderosos, tão cultos e tão soberbos, tão importantes e tão valentes, tão idiotas...  

 

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