EU
E A MÚSICA
TRÊS
ATOS COM BILLY PAUL
Existem certas coincidências que acontecem na vida da gente
que valem a pena ser lembradas, por insólitas que são.
A marchas e contramarchas da vida me levaram a conhecer o pacato e venerando cidadão
Paul Williams, morto em 2016 com 81 anos, na época em que ele era cenicamente conhecido
como Billy Paul, um divertido e versátil cantor e um artista de grande talento,
utilizando com maestria a sua voz e o seu corpo a serviço da black music, com muito soul, funk e swing.
Não fossem, porém, as ditas coincidências puramente circunstanciais, eu talvez
nunca tivesse assistido a um show seu nem tivesse tido a oportunidade de conhecê-lo
pessoalmente.
O fato é que, sem nunca ter procurado pelo seu show e sem jamais ter gasto
sequer um tostão com ingressos, acabei, ao longo de vinte anos, assistindo não
a um, mas a três shows de Billy Paul.
A primeira vez em que Billy Paul veio ao Brasil, no início dos anos 1970, eu ainda
morava em São Paulo e tinha uma legião de amigos que eram, à sua moda,
envolvidos com música – cantores de boates, proprietários e atendentes de lojas
de discos, divulgadores de gravadoras, relações públicas e agentes de cantores,
colecionadores de discos e agentes de artistas.
Dercy Gonçalves, um rapaz homônimo da comediante e às vezes tão engraçado
quanto ela, era divulgador da gravadora Continental e estava preocupado com a
entrevista coletiva que Billy Paul daria à tarde num hotel da cidade. Em
virtude de eventos paralelos, o intérprete contratado pela gravadora e pela
Rádio Bandeirantes, que era parceira do evento, não poderia estar presente,
então Dercy lembrou-se de mim, um amigo que “arranhava” o inglês e que poderia ajudar
na coletiva com as perguntas de praxe e a posterior tradução.
A irresponsabilidade é muitas vezes companheira da criatividade e do sucesso.
Para o bem geral de todos, a coletiva não apenas transcorreu de uma maneira
melhor que o esperado como deixou os promotores muito satisfeitos. Billy Paul
também se divertiu bastante com a entrevista improvisada, ou pelo menos assim
me pareceu.
É bem verdade que ele estava praticamente iniciando a sua carreira
internacional e que tudo lhe parecia novo e interessante, e que naqueles tempos
românticos estes assuntos técnicos não eram tratados com o rigor de hoje em
dia.
Ao término da entrevista, a produção do show agradeceu a minha participação e
me deu, provavelmente à guisa de pagamento, ingressos para “o show de logo mais à noite”.
Assim eu, que até então nunca tinha sequer ouvido falar de Billy Paul, fui pela
primeira vez a um espetáculo seu, realizado no Teatro Paramount, sendo
apresentado aos seus sucessos “Me And
Mrs. Jones” (Kenny Gamble e Leon Huff), “Your Song” (Elton John), e “It’s
Too Late” (Carole King), com os quais fiquei imediatamente encantado.
O tempo correu e desembocou na década de 1980.
Certo dia estava eu fazendo nada no estúdio da Rádio Mirante-FM em São
Luís-Maranhão, quando o locutor César
Roberto, que também provavelmente fazia nada, posto que o seu programa já havia
terminado, perguntou se eu “aguentaria
uma dose de música pop num show que aconteceria à noite” (era uma pequena
provocação, ou então uma cândida tentativa de fazer piada, porque minha
atividade na emissora era produzir e apresentar música de jazz).
Quando retruquei que “dependia do show”,
ele foi mais explícito – tratava-se de soul
music, com um dos grandes nomes internacionais do estilo, Billy Paul. César
Roberto havia recebido alguns ingressos da produção do cantor para distribuir
entre o pessoal da radio.
Deliciado com a coincidência, pois o show seria um revival daquela noitada alegre do Paramount, é claro que concordei,
e à noite fomos nos acomodar nas cadeiras ordenadamente distribuídas na quadra
de tênis descoberta do Hotel Quatro Rodas.
Era noite de lua cheia – ou plenilúnio, como diriam os parnasianos – e o céu
dos trópicos cintilava de estrelas. A brisa suave que vinha do mar a poucos
metros do local não conseguia refrescar o calor emanado pelo show, e o cheiro
da maresia era atenuado pelo sabor da cerveja comprada dos estandes ao redor ao
pista e pelo leve odor do perfume usado pelo público que estava mais chique do
que o evento exigia.
Billy Paul, que naquela noite estava extraordinariamente animado, desceu do
palco para cantar e dançar no meio da plateia, que naquela altura arrastou as
cadeiras do lugar e transformou a quadra de tênis numa autêntica pista de “discoteque”
ao ar livre.
Aproveitei para conversar com Billy e comentar sobre o evento da Radio
Bandeirantes em São Paulo, do que ele evidentemente não se lembrou, mas
gentilmente fez de conta que havia me reconhecido.
Mais uma década se passou.
Eu estava novamente em São Paulo, desta vez cuidando da edição do meu livro “Jazz – Das Raízes Ao Pós Bop”, quando meu amigo Eduardo Sérgio Fracalanza convidou-me
para jantar, após o que iríamos a um show de jazz na casa mais conceituada da cidade.
Depois de uma excelente anchova na manteiga com amêndoas, regada por uma
cerveja geladíssima (e não por um bom vinho, como o maître queria), partimos para o Bourbon Street para afinal descobrir
que naquela noite especial não teríamos o tradicional jazz do local, mas uma
apresentação de... Billy Paul!
O repertório não havia mudado muito nos últimos vinte anos e não faltaram os
seus velhos sucessos – afinal, era o que o público queria ouvir – e Billy
continuava bastante jovial.
Com a nossa mesa relativamente longe do palco, poupei a ele a gentileza de mais
uma vez “se lembrar” dos nossos encontros anteriores.
Mas contei a Fracalanza a singularidade da minha relação com o pop-star.
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