EU
E A MÚSICA
UM
PIANO NO FIM DA TARDE
Parte 2
No meio de tanta brancura avistamos
como que surgindo do nada um piano negro com a asa aberta, que crescia dentro
do cenário emitindo acordes jazzísticos formidáveis. O som e a imagem que
chegavam até nós, ao invés de quebrar o encantamento da cena, trazia uma aura
de imponderabilidade, como se todo o ambiente tivesse de repente começado a flutuar.
Caminhei em direção ao piano, com o
som do jazz agora ocupando todo o espaço, e num instante reconheci “How About You?” (Burton Lane e Ralph
Freed), e por trás do instrumento ninguém menos do que Dick Farney, que também
estava ali para uma gravação e naquele instante aquecia os dedos – conforme ele
nos confidenciou.
Dick recebeu nossa intromissão com
um semblante sorridente e a expressão levemente enigmática, uma extensão dos
seus shows de jazz aos quais eu me habituara a assistir em algumas noites de quarta-feira
no auditório de A Folha de São Paulo na Rua Barão de Limeira ou em alguma boate
da região central da cidade.
A sua presença solitária naquela
hora e naquele lugar parecia estranhamente etérea e conveniente.
Mr. Farney não perguntou o que
fazíamos no seu território – a parafernália que trazíamos em mãos acho que era mais
que suficiente para qualquer bom entendedor – mas isto não nos intimidou e logo
travamos uma rápida conversa com ele.
Afinal, estávamos frente a frente
com um dos músicos que ajudaram a escrever a história da música brasileira nos
Estados Unidos e que fazia parte de uma revolução de ideias que culminaram com
o advento da bossa nova dez anos antes, usando como recurso apenas a sua voz e
seu piano, como se isso fosse pouco.
Além de “How About You” Farney gravara standards
famosos como “She’s Funny That Way” (Richard A.Whiting e Neil
Moret), “These Foolish Things” (Jack
Strachey, Holt Marvell e Harry Link), “What’s
New?” (Johnny Burke e Bob Haggard) e “You
Go To My Head” (J.Fred Coots e Haven Gillespie). A gravação
de Farney feita nos Estados Unidos em 1947 para a música “Tenderly” (Walter Gross e Jack Lawrence) havia sido feita em
primeira mão, antes mesmo das versões de Sinatra e Nat “King”Cole.
Tudo isto sem prejuízo da discografia
nacional do final da década de 1940 e de toda a década de 1950, com gravações que
serviram de base histórica para o surgimento da bossa nova – “Perdido De Amor” (Luiz Bonfá), “Copacabana” (João de Barro e Alberto
Ribeiro), “Nick Bar” (Garoto e José
Vasconcelos), “Você Se Lembra”
(Haroldo Eiras e Victor Berbara), “A Saudade Mata A Gente” (Antônio Almeida e
João de Barro), “Um Cantinho E Você” (José Maria de Abreu e Jair
Amorim), “Se O Tempo Entendesse”
(Marino Pinto e Mario Rossi), “Somos Dois”
(Armando Cavalcanti, Luiz Antônio e Klécius Caldas), “Ponto Final” (Alberto Ribeiro e José Maria de Abreu), “Outra Vez” (Antônio Carlos Jobim) e
outras tantas maravilhas.
Dick Farney sempre se interessou
pelo jazz e pelos clássicos americanos, tanto na voz quanto tocando piano, e
seu debut na Radio Cruzeiro do Sul
foi cantando a mais improvável das musicas – “Deep Purple” (Peter DeRose e Mitchell Parish), na época em que os
cantores amadores se especializavam em Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo e
Assis Valente.
Ele apareceu na música brasileira
no local e na hora certa – Rio de Janeiro, num momento em que a juventude
carioca frequentava a Lojas Murray em busca do que havia de mais moderno em
discos de jazz e standards – e
provocou inclusive a criação do primeiro fã-clube de que se tem notícia no
Brasil, o Sinatra-Farney Fan Club), que infelizmente durou apenas um ano.
-0-
A nossa filmagem se deu mais tarde,
em um ponto distante de onde estava Dick Farney, mas não pude deixar de me
quedar estático durante um bom tempo me inebriando com o som daquele piano no
fim da tarde. E aquele som – “I like New
York in June, how about you?”... –
acompanhou o nosso trabalho como uma benfazeja e inesperada trilha sonora.
Afinal, o filme era mudo, mas
felizmente não era surdo...
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